domingo, 30 de junho de 2013

ODETE COSTA SEMEDO – NO FUNDO DO CANTO (A Nação)

ODETE COSTA SEMEDO – NO FUNDO DO CANTO
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 295, de 25 de abril de 2013, p. A40.

A Guiné-Bissau é um país de parca produção literária e Odete Costa Semedo traz uma excelente contribuição para a poesia guineense com o seu livro “No fundo do canto”, de 2003.
Após o trauma do sangrento conflito armado entre 07/06/1998 e 07/05/1999, Semedo utilizou a experiência vivenciada como matéria poética para o canto-poema de seu livro: é “o desabafo escancarado de uma situação” (SEMEDO, 2007, p. 13) em que o país havia mergulhado por causa dos vários descaminhos políticos após a independência, em 1974.
“No fundo do canto” trata da história recente do país e do horror da guerra, e, a partir daí, afirmar a identidade nacional, buscando desconstruir a nação para reconstruí-la poeticamente. Para isso, Semedo nos introduz na multifacetada cultura das etnias guineenses, valendo-se do retorno às tradições, do culto aos antepassados e ao uso constante de vocábulos da língua crioulo que se misturam ao português.

Em poemas curtos ou longos; ora épicos, ora líricos; o sujeito lírico narra em primeira pessoa a guerra ou em terceira pessoa descreve fatos e determina vaticínios. Logo, apreendemos a crescente tensão política do país em quatro partes que se completam no decorrer da leitura, a saber: “No fundo... no fundo”, “A história dos trezentos e trinta e três dias”, “Consílio dos irans” e “Os embrulhos”.

Na primeira parte somos convocados pelo tcholonadur, o mensageiro, que se autoafirma o intermediário que narrará os acontecimentos: “Não te afastes / aproxima-te de mim / (...) pede-me que te mostre / o caminho do desassossego / o canto do sofrimento / porque sou eu o teu mensageiro / (...) vem... / senta-te que a história não é curta”.

O afastamento da cultura tradicional para que o país se enquadrasse na política internacional, exigia a modernização da nação em detrimento das promessas da revolução: “Veio a tecnologia / espreitou / mas não entrou / tropeçou num buraco / estava escuro / não deu com a entrada / e continuou na rua ao pé da casa / à espera de luz “.

“A história dos trezentos e trinta e três dias” denuncia a agonia dos guineenses com o cruel conflito. O caos estabelecido pela violência dos militares nacionais e estrangeiros acompanha o horror da poetisa: “venceram a ganância / a violência / e o desespero / E nós? / não acredito / no que os meus olhos vêem”. O vaticínio se cumpriu; os ideais da libertação, minados: “Um mundo de promessas / foi deixado para trás”. Surge a distopia: “Bissau não quis acreditar / que estava sendo violada / violentada / adulterada (...) / nua deitou-se de bruços / para receber chicotadas / para receber açoite”.

No “Consílio dos Irans”, a convocação das entidades de todas as etnias e subetnias, seus irans e totens em rituais, mostra a pluralidade cultural guineense. As linhagens anunciam-se, é feita a kontrada (grande reunião) com irans (divindades protetoras) de todas as djorsons (linhagens), porque “há culpados... / Que não fiquem mudos / nem impunes”. Semedo recorre à religiosidade tradicional para reconstruir a fragmentada identidade nacional através da identidade coletiva e procura salvar a nação da guerra.

Entretanto, o rompimento com a exploração se dá quando todas as etnias se unem, ou seja, o país se recompõe pela reconciliação de seus filhos, sem apoio estrangeiro. A força dos antepassados e das entidades emerge a nação: “Os irans das djorsons sentiram / Guiné e Bissau uma só / erguendo-se com vigor / reafirmando sua força (...) / invocaram todas as energias / do alto às profundezas do mar / e o chão foi abençoado”.


Depreendemos após a leitura de “No fundo do canto”, que, Odete Semedo, testemunha do conflito de 1998/1999, denuncia o horror da guerra, usa a ironia para desmascarar o discurso da classe dominante e o mal que o neoliberalismo encoberta. Em seu texto, propõe, através de alegorias e da desconstrução da realidade do país, a revalorização da multifacetada cultura guineense em favor da identidade e soberania nacionais. 

Nenhum comentário: