domingo, 30 de junho de 2013

Mulheres na poesia cabo-verdiana (A Nação)


Mulheres na poesia cabo-verdiana
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 239, de 29 de março de 2012, p. E20.
O mês de março configura-se como o de celebração da mulher, assim como de reflexão das condições adversas de subalternidade por que passam as mulheres no mundo diariamente, realidade assaz comum em sociedades regidas pela ética patriarcal-capitalista e de ideologia racial branca como padrão hegemônico.
Da insistente pertinência e urgência do tema, em trocas por correspondência eletrônica com a socióloga e poetisa Eurídice Monteiro, intelectual com destacada presença na defesa dos direitos da mulher cabo-verdiana, venho desenvolvendo algumas questões acerca da poesia de voz feminina em Cabo Verde.
Em profunda análise da trajetória das mulheres-poetisas em Cabo Verde, Monteiro discorre sobre a exclusão social e literária que essas mulheres sofreram e sofrem ao longo dos anos, conduzindo-as a fazer do texto literário o espaço para denúncia de suas condições invisibilizadas ou estigmatizadas pelo cânone do arquipélago.
O texto de Monteiro revela questões impeditivas que abarcam aspectos culturais, sociais, raciais e de gênero para apresentar a “imposição da subalternidade do Outro” determinados por três paradoxos, sendo o primeiro a cultura dominante que ainda se funda em termos europeizantes e regionalizads, nos quais se destacam o padrão étnico-cultural africanizante como de suposta inferioridade cultural predominante na ilha de Santiago; o segundo trata das diferenças entre os espaços urbano e rural; enquanto o terceiro revela a dialética de inclusão e exclusão das mulheres, em diferentes combinações de gênero, classe, ou região, estigmatizando diferenças internas de erotismo e exotismo no coletivo das mulheres das ilhas de S. Vicente e Santiago.
A partir dessas formulações, Monteiro questiona a ausência de poetisas no período nativista e na revista Claridade, sendo que nesta jamais foi publicado texto de qualquer escritora, enquanto naquele a ensaísta faz um interessante levantamento de poetisas com textos publicados nos almanaques de lembranças, tendo especial destaque Antónia Gertrudes Pusich, autora da primeira obra publicada de autoria cabo-verdiana, «Elegia àmemória das infelizes victimas assassinadas por Francisco de Mattos Lobo» (poemas, 1844), e a primeira mulher a dirigir e fundar jornais.
A ensaísta mostra-se audaciosa ao questionar o cânone e revelar o sexismo claridoso ao tratar a condição da prostituição nos poemas de Jorge Barbosa em importante comparação a poemas de Yolanda Morazzo, assim como a voz poética feminina evocando a participação como sujeito da história em Vera Duarte e Carlota de Barros, para além da subversão das práticas sexistas homogenizantes através da apropriação das manifestações culturais e da memória coletiva. Para isso, menciona-se a importância da tradição oral revista por Nha Nácia Gomi e sua “ironia mordaz e desafiadora das práticas sociais sexistas”.
Enriquecedores para os interessados na temática são as propostas comparativas de textos pré e pós-independência e entre gêneros literários, como Lay Lobo e Maria Helena Spencer; a perspectiva da luta feminista em Vera Duarte e Dina Salústio; a percepção das vozes diaspóricas e o deparar-se com as mutações do arquipélago no regresso em Carlota de Barros; e o especial destaque à Eneida Nelly, jovem poetisa que recentemente deu fim à vida, como resposta à asfixia vivenciada cotidianamente por uma mulher negra, pobre e “colocou simultaneamente em debate o acesso desigual ao campo literário-cultural, entre homens e mulheres de uma dada ilha, bem como entre as mulheres de diferentes classes sociais ou regiões do arquipélago”, condição traduzida no sugestivo título de seu único livro: “Sukutam” (Escuta-me).

Trata-se de um ensaio fundamental por chamar atenção para o fato da marginalização das mulheres na sociedade cabo-verdiana manter-se desde os tempos coloniais, mas que vem sendo alterado gradativamente por vozes-mulheres cada vez mais inseridas nas diferentes áreas do saber.

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