domingo, 30 de junho de 2013

Eulalia Bernard (Costa Rica) (A Nação)

Eulalia Bernard (Costa Rica)
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 293, de 11 de abril de 2013, p. E21.
As histórias das nações do continente americano são marcadas pelo silenciamento da participação dos negros na construção desses países. Retirados à força da África, a presença negra é mencionada durante o absurdo da violenta escravidão, depois com os processos de abolição, porém mantém-se silêncio sepulcral à revolução dos negros escravizados no Haiti (1804) e posterior expulsão dos colonizadores franceses. Uma humilhação para europeus e elites coloniais temerosos que uma onda revolucionária negra expandisse pelas Américas, que legou ao ostracismo para o restante do mundo a digna revolta antiescravagista liderada por Toussaint Louverture.
O cânone das literaturas americanas participa desse processo de ocultar os negros tanto nas personagens como na autoria. Em razão disso, uma das funções do texto literário produzido por negros é o seu caráter testemunhal, revisitando as rasuras da história, rompendo com os estereótipos impostos pelo preconceito racial, exigindo o reconhecimento da dignidade dos negros e da sua contribuição na formação de seus países.
Na Costa Rica, pequeno país da América Central, não poderia ser diferente e Eulalia Bernard (1935) é um nome que se impõe ao romper com essa perspectiva. Nascida em Limón, filha de jamaicanos, professora de literatura, criadora da cátedra de estudos afro-americanos na Universidade da Costa Rica em 1981.
“Ritmohéroe” (Editorial Costa Rica, 1982), livro de estreia desta poetisa negra, a primeira a ter publicação individual no seu país, procura retratar a peculiar presença dos negros na Costa Rica e os embates para construir uma identidade costa-riquenha. O prefácio de Quince Duncan revela que a diáspora negra na Costa Rica começa com a chegada de negros antilhanos – maioria jamaicanos – para construção de ferrovias ao final do século XIX. Depois, os negros passam a trabalhar no cultivo da banana. Essa primeira geração concentra-se na cidade de Limón, comunica-se em inglês e objetiva juntar economias para retornar à Jamaica. A partir de 1930, o país atravessa grave crise econômica, o regime fascista impõe o uso do idioma espanhol e força a assimilação cultural dos negros. A segunda geração relaciona-se com a Jamaica como um Éden, Limón como sua cidade e que guarda certos valores da cultura negra. Em 1960, a geração seguinte reage a esse processo, busca suas raízes e a contribuição dos negros para o país. Desde então esse processo vem sendo fortalecido pela quarta geração já nos anos 1980, tendo na inserção às universidades a marca para a disputa de novas epistemologias para pensar a população negra na Costa Rica.
Na sua poesia a fé católica surge não como resignação, mas como forma de questionamento diante das injustiças sociais: “Y el negro rezó/ pero Jesús no lo oyó/ y el negro rezó/ pero La Virgen no lo vio/ rezó el negro/ el negro rezó/ (...) el negro no más rezó/ el negro el fusil tomó/ el negro habló y habló/ Jesús lo oyó/ la Virgen lo vio/ con su voz de fusil/ y su estómago de reloj”. A urgência de mudanças apresenta-se na brevidade dos versos a partir da não manifestação de apoio das figuras bíblicas de Jesus e da Virgem Maria, que podem ser transpassadas para a indiferença de uma sociedade calcada na exclusão. Resta à população negra a voz insurgente para a emergência de seu tempo.
Dentre as marcas culturais dos negros na Costa Rica, a festa do carnaval é celebrada em alguns poemas como o momento de liberdade e gozo para os negros: “El Carnaval,/ vamos, veamos los negros brincar,/ que trabajo no les vamos a dar.// El Carnaval,/ siéntete rey o reina del mar,/ negro!, es tu única oportunidad”. Realidade comum lá e cá.
O amadurecimento identitário, o pertencimento à nação e o mito do paraíso perdido se dá em “Requiem a mi primo jamaiquino”: “Soy negro del campo,/ del Valle La Estrella./ Soy uma estrella negra/ em el flamante Blanco, azul y rojo/ de nuestra bandera”. A ruptura com o motivo edênico da Jamaica para a primeira geração de negros na Costa Rica surge com a identificação ao novo lugar, ao Valle La Estrela, e com o símbolo nacional da bandeira. Com isso, na zona de tensão caracterizada o entrecruzamento cultural aparece no uso da língua para a comunidade de Limón, ora espanhol, ora inglês, ou no uso do ‘spainenglish’: “Sí Seño;/ soy costarricense,/ aunque apellidado este/ con ‘insky’, ‘man’, o ‘Le’”.
É na transgressão da ordem estabelecida que a poesia de Eulalia Bernard desvela a participação dos negros na formação identitária costa-riquenha, tendo na ancestralidade do tambor a subversão da palavra escrita, da religião, da língua. A força da poesia ao ritmo do tambor, signo marcante da poética negra presente tanto no brasileiro Carlos de Assumpção quanto no martinicano Aimé Césaire, ou ainda no moçambicano José Craveirinha: “Mi poesía es um tamborileo. (A veces fuerte) con ritmos multiplicados por el fervor fuerte./ (...)En mi poesía el tambor es lira y el ritmo es el soneto. Yo soy la mambo del culto ancestro// Sé decir sí, sé decir ‘yes’. Sé decir lo que quiero en las lenguas que prefiero, con el habla del tambor./ En mi poesía, cada palabra es un dios. Cada dios es un ritmo, cada ritmo cópula, cada cópula un canto./ Mi poesía es. Hazte tambor y amarás mi canto”.

Estes são rápidos momentos da poética de Eulália Bernard, integrante dessa poética negro-diaspórica que incomoda com seus deslocamentos estéticos, semânticos, sintáticos, os cânones literários.

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