domingo, 30 de junho de 2013

Cruz e Sousa – o negro branco (A Nação)

Cruz e Sousa – o negro branco


Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 289, de 14 de março de 2013, p. E18

Embora João da Cruz e Sousa seja o maior nome do Simbolismo brasileiro, a nossa historiografia literária dedicou-lhe uma equivocada atenção ao considerar seus poemas acríticos a sua condição de negro em um período efervescente da história brasileira, com o fim da escravidão (1888) e a proclamação da República (1889). Contra essa história das ausências que uma considerável fortuna crítica, com destaque para “A consciência do impacto nas obras de Cruz e Sousa e Lima Barreto”, tese de doutorado de Cuti, vem sendo desenvolvida à margem do cânone para anular o embranquecimento imposto. Frisa-se que fato parecido ocorre(u) com a obra de Machado de Assis e o silenciamento da Academia diante do livro “Machado afrodescendente”, de Eduardo de Assis Duarte.
A biografia “Cruz e Sousa – o negro branco” (São Paulo: Brasiliense, 2003), feita pelo também consagrado poeta Paulo Leminski (1944-1989), contribui para a dificuldade do cânone em exaltar a genialidade de um negro e que essa vivência apareça em sua obra. Logo, estranha-se o fato de seu poema “Emparedado”, em que explicita o ser negro, apenas mais dentre tantos outros poemas, seja ignorado pela crítica especializada. Afinal, não somos racistas, escreveu alguém muito importante.
Cruz e Sousa nasceu escravo em 24/11/1861, em Nossa Senhora do Desterro, estado de Santa Catarina, e morreu* no Rio de Janeiro em 1898. Foi adotado pelos proprietários de seus pais que lhe deram educação e todos os direitos proibidos aos negros. O poeta aproveitou-os e destacou-se pela inteligência incomum, sendo a prova do absurdo das teses racistas do período. A vida de negro no mundo dos brancos aguçou a consciência dupla escancarada para além das conversões simbolistas, sua tormenta oriunda do meio em que viveu transformou-se esteticamente, trazendo para a poesia os conflitos do homem negro emparedado, castrado no mundo dos brancos, mas sem jamais submeter-se. Seu simbolismo tem a alvura de Rimbaud e outros, mas é carregado da subversão consciente dos impedimentos. Ele enegreceu o Simbolismo e forçou os críticos a atentar para a livre expansão dos signos em imagens viscerais, o que Leminski identificou como expressionista. Interessante a ousadia de deslocar o cânone para o Poeta do Desterro, já que o “Expressionismo não existe na história das formas literárias, no Brasil”.
Com isso, célebre o poema “Caveira” no qual a relação das três estrofes com a gradação do vocábulo caveira e da pontuação exclamativa demonstra as diferenças fenotípicas – olhos azuis, nariz de linha, boca de curva leve – são anuladas pela morte. Para Leminski, tem poetas cuja vida é, por si só, um signo, e elege “a figura de retórica mais adequada para a vida de Cruz e Sousa é o oxímoro, a figura de ironia, que diz uma coisa dizendo outra”, já presente no provocante título da obra.
Gratificantes as considerações de Leminski acerca da rejeição dos literatos brasileiros ao Simbolismo destacando o momento de auge do Parnasianismo de Olavo Bilac e outros da Casa Grande – o Rio de Janeiro – com seu egocentrismo e de sentidos corretos, enquanto o Simbolismo desenvolveu-se em cidades periféricas, e o negro Cruz e Sousa com sua poesia sinestésico-visceral de destruição e ampliação dos sentidos causava estranheza. Assinala-se a relevância das múltiplas citações às culturas negras diaspóricas, à religiosidade negra brasileira, à música negro-poética de Gilberto Gil e Bob Marley e a referências literárias. Leminski construiu uma biografia alinear, concisa, de exaltação ao Simbolismo, essa expressão máxima da palavra poética, apresentou exemplos do uso do aspecto visual e expansão dos signos foram importantes para o movimento e, sobretudo, a admiração a Cruz e Sousa.
Para concluir, a maneira envolvente como Leminski acrescentou elementos autobiográficos ao biografado flexionou o conceito de biografia, para além das diversas referências culturais engrandecendo o texto. O filho de pai polonês e mãe negra brasileira, esse polaco negro buscou completar-se nesse outro atormentado – tormentas terríveis vivenciou Leminski – pelo trânsito em dois mundos, assumindo-se como o outro. E assim encerra:
“Perfeição só existe na integração / dissolução do sujeito no objeto.
Na tradução do eu no outro.
É por isso que você gostou tanto deste livro.
Você, agora, sabe.

Você, eu sou Cruz e Sousa.”

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É errônea a informação do local de morte de Cruz e Sousa na biografia feita por Paulo Leminski. O poeta faleceu na cidade de Sítio, estado de Minas Gerais, a 19 de março de 1898.

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