domingo, 30 de junho de 2013

Arménio Vieira - Metaliteratura em “No Inferno” (A Nação)

Metaliteratura em “No Inferno”
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 287, de 28 de fevereiro de 2013, p. E18
Um escritor é convidado por um mecenas para escrever um romance. Para tal empreitada é enclausurado em uma casa que possui uma vastíssima biblioteca, mas para ter sua liberdade de volta, tem um ano para fazê-lo e necessita que esse romance seja considerado excelente por um júri. Caso este o avalie como uma obra prima, imediata a libertação. Como alternativa a essas exigências, o escritor pode decifrar incontáveis códigos de vários cacifos, porém é logo desencorajado em razão do tempo que pode levar para atingir sua meta.
As condições inquestionáveis transformam-se no inferno ao qual se encontra o personagem-narrador-autor deste (não)romance realizado por Arménio Vieira: “No Inferno” (Praia, Mindelo: Centro Cultural Português, 1999). A obra de Arménio caracteriza-se pelo esgarçamento das fronteiras literárias comuns ao sistema literário cabo-verdiano, afastando-se, quando muitas vezes, subvertendo o legado claridoso, ou melhor, um anticlaridoso como bem apontou José Luis Hopffer C. Almada. De sua lavra, dentre outros, “Poemas”, “O eleito do Sol” e “MITOgrafias”, além da participação em jornais e revistas desde os anos 1960. Galardoado com Prêmio Camões em 2009.
Em “No Inferno”, Vieira vai ao extremo da metalinguagem ao realizar um “romance” no qual a maior homenageada é a Literatura, principalmente a ocidental, com incontáveis referências aos cânones – Homero, Dante, Shakespeare, Rimbaud – e personagens consagrados ao longo dos anos – Fausto, Godot, Robinson Crusoé, Romeu, Ulisses –, em uma enorme colcha de retalhos, fragmentos que se fundem, refundem numa história assaz criativa acerca da condição desesperada de um escritor, originalmente poeta, para cumprir a sua tarefa.
Assinaláveis as ocorrências de natureza autobiográfica ao longo do texto, a ausência de memória identitária do narrador-personagem e a maneira habilidosa e envolvente como o autor conduz o leitor a esse jogo. Por outro lado, da imensa biblioteca à disposição do personagem surge a surpresa com a lembrança de livros inteiros, transcrevendo-os. É a ironia, figura de retórica tão característica na obra de Vieira. A partir daí, a frustração com o que escrever, uma vez que o gênero romance se esgotou.
Delírios desordenados aparecem em diálogos absurdos aos quais Robinson – que transmuta-se em Leopold, Romeu, Safo, seja lá quem for – quando desanda a escrever não cria romances, mas contos, pequenas histórias. A narrativa avança nas intertextualidades, mas, questiona-se: e o romance, quando começa a escrevê-lo? Cada vez mais rápida e inusitada segue a narrativa e o leitor à espera de algo que não acontece. O que, de maneira nenhuma, gera frustração a quem lê, mas sim satisfação com a inventividade de “(u)m escritor talvez inconcebível fora de uma literatura-metalinguagem”, em feliz assertiva da prefaciadora Clara Seabra.
Arménio Vieira vai ao extremo do que a literatura pode oferecer como revelação do mundo e de transformar cada um de nós a partir de dentro, como bem afirma Tzvetan Todorov em “A literatura em perigo” (2010). A literatura pode muito, Vieira sabe e faz isso muito bem a partir de um imenso – por vezes dá impressão de inesgotável – repertório, construindo intertextualidades que cairiam fáceis na pura vaidade e suposta complexidade oca da maioria dos autores contemporâneos. Entretanto, Arménio não é um escritor narcisista e submete o fazer literário à vanglória. Sendo assim, consegue estremecer o leitor com uma inesgotável capacidade de surpreendê-lo a partir de referências díspares, de Walt Disney a Dante, passando por Goethe, James Dean, Safo e Michael Jackson, e assim alcança uma metaliteratura com a construção desse envolvente (não)romance “No Inferno”.

Da metáfora da clausura na ilha à clausura do escritor para escrever, do esgotamento do romance ou não, Arménio Vieira, como o próprio sinaliza em Nota Prévia, cultiva o seu jardim, assim como Hemingway, Camus, García-Márquez e Saramago; e conforme estes, saiu-se muito bem. 

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