quinta-feira, 11 de agosto de 2011

José Luís Hopffer C. Almada – “Uma criatura da saudade” (resenha)

José Luís Hopffer C. Almada – “Uma criatura da saudade”
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário A Nação, nº 206, p. 20, de 11/08/2011.

A obra de José Luis Hopffer Almada solidifica-se na poesia cabo-verdiana contemporânea em razão da complexidade com que trata temas consagrados no sistema literário do seu país, tais como a evasão e a emigração, assim como de um minucioso labor de lapidação da palavra demonstrado na incessante recriação de seus poemas, para além da louvável atuação na crítica literária, no ensaio e na promoção da cultura de Cabo Verde.

Escolhemos o poema “Na morte de Baltasar Lopes da Silva (que também é o poeta Osvaldo Alcântara)” (na versão publicada recentemente em “Cabo Verde: antologia de poesia contemporânea”, organizada por Ricardo Riso e que refunde a versão inicialmente publicada na revista “Fragmentos”), para abordarmos a identidade cabo-verdiana, expondo um sujeito deslocado e fragmentado que refaz seus poemas na diáspora, de cabo-verdiano das dez ilhas e da terra-longe, revisitando as origens de sua cultura e as replanejando na contemporaneidade. Segundo Stuart Hall, “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas”. Nesse sentido, temas caros à literatura anunciam-se: “evadiram-se os meus companheiros para a Pasárgada, desterraram-se para as hespérides ou degredaram-se para a terra-longe?” Deslocamento apresentado na rica heteronímia, na transumância de seu heterônimo mais vinculado à mãe-terra, de Zé di Sant’Y’Águ para NZé di Sant’Y’Águ, este telúrico e lusógrafo que tanto pode estar nas ilhas quanto na diáspora, enquanto aquele ficou restrito aos poemas em língua materna.

Nesse poema atribuído nesta versão muitíssimo abreviada a NZé di Sant’Y’Águ os macrotemas da evasão e da emigração são trabalhados em uma ampla tessitura de saudade bipartida. Talvez por isso a homenagem ao claridoso Osvaldo Alcântara, o maior responsável pelo pasargadismo na literatura cabo-verdiana. Pasargadismo que foi evasionista e também gerou a sua recusa, o antievasionismo, questões revisitadas no poema: “Sinto saudades do norte desconhecido onde trilham os passos dos meus amigos ausentes. Sinto saudades do ignoto san francisco do norte. Sou saudosista. Sou evasionista.// Os meus companheiros, meus conterrâneos da mãi-terra, meus contemporâneos da pasárgada, sentem saudades do san francisco de cá, do nosso sul. São saudosistas. São anti-evasionistas”.

Nessa condição sofrida impõe-se o sentimento de saudade sob “à sombra da acácia”. O sujeito lírico projeta uma experiência cosmopolita e parte para a 11ª ilha: “Não dura muito escapar-me-ei para o norte (...). Integrar-me-ei no exôdo dos rostos. Negu. A transumância dos corpos. (...) E só então serei terra-longista”. Assim, confirma sua raiz afro-crioula e sente as agruras de emigrante: “Gueto. Trabalho e gueto. Crioulo e gueto. Cachupa e gueto. Lágrima e gueto. Navalha e gueto. Getu de rosto descoberto. Da descoberta da face escura”, e relembra a trágica experiência dos povos africanos durante a colonização da ilha de Santiago: “Dos filhos da diáspora nasceu a ilha. O tráfico dos corpos. A deportação da alma. (...) Com a audácia dos navegadores. Com a calculista frieza dos negreiros. (...) O atlântico odor de sangue. O choro em ancestral exílio. Da porta sem retorno de gore à pia baptismal da cidade velha”. Dessa maneira, a “reconstrução do meu olhar na vasta diáspora” apresenta um sujeito conotado ao seu tempo, e segundo Edward Said, capaz de “representar o sofrimento coletivo do seu próprio povo, de testemunhar suas lutas, de reafirmar sua perseverança e de reforçar sua memória”, pois a “tarefa do intelectual é universalizar de forma explícita os conflitos e as crises, dar maior alcance humano à dor de um determinado povo ou nação”.

E é assim, para um povo que navega pelas sete partidas do mundo, que José Luis Hopffer Almada reconfigura esse sentimento dilacerante comum ao cabo-verdiano nas ilhas ou na diáspora, a saudade, e presta seu contributo de escritor-intelectual exposto, segundo Said, “ao risco da ousadia, à representação da mudança, ao movimento sem interrupção”.

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