quarta-feira, 8 de junho de 2011

António Pompílio – Fronteira: a passagem do limite (resenha)


António Pompílio – Fronteira: a passagem do limite

Ricardo Riso, 08 de junho de 2011.

Os primeiros anos do século XXI apresentam-se como uma época de aparente letargia frente ao vitorioso modelo neoliberal que tenta de todas as formas mascarar as suas falhas gravíssimas, ora por meio da manipulação dos canais de informação, ora por ininterruptas propagandas de busca por bem-estar e sucesso a que todos (supostamente) têm direito, procurando encobrir a exclusão social imposta à maioria da população mundial. Com o descaminho da esquerda política e a dificuldade da sociedade em se organizar nos países regidos pelo capitalismo, a sensação de inércia se evidencia por não mais se questionar o jogo ao qual somos submetidos, por isso é pertinente as considerações do filósofo contemporâneo Tony Judt com o intuito de desestruturar a impotência reinante:

Há algo de profundamente errado na maneira como vivemos hoje. Ao longo de trinta anos a busca por bens materiais visando o interesse pessoal foi considerada uma virtude. (...) Sabemos o preço das coisas, mas não temos ideia de seu valor. Não fazemos mais perguntas sobre uma decisão judicial ou um ato legislativo: é bom? É justo? É adequado? É correto? Ajudará a melhorar o mundo ou a sociedade? Essas costumavam ser as questões políticas, mesmo que suas respostas não fossem fáceis. Devemos mais uma vez aprender a fazê-las. (JUDT, 2011, p. 15-16)

Diante do desarranjo de nosso tempo torna-se necessário reaprender a questionar, e a literatura está a nossa disposição para suprir os anseios e medos que nos afligem. Com sua vocação para ampliar o mundo de cada um de nós, a literatura se apresenta como o esteio para nos fazer crescer e aqui cabe recordar o amor à literatura assim descrito por Tzvetan Todorov:

Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver. (...) em lugar de excluir as experiências vividas, ela me faz descobrir mundos que se colocam em continuidade com essas experiências e me permite melhor compreendê-las. (...) Mais densa e mais eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. (...) a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. (...) ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano. (TODOROV, 2010, p. 23-24)

Essa longa introdução aponta para algumas questões que nos parecem interessantes e pretendemos expor nosso entendimento acerca da obra poética “Fronteira: a passagem do limite” (Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2008), do angolano António Pompílio, nascido no Lobito, em 05/07/1964. O livro ainda tem interessante prefácio de Katia Rodrigues. O autor é designer gráfico e jornalista bacharel do curso de língua e literatura portuguesa na Faculdade de Letras e Ciências Sociais em Luanda. Publicou em poesia “O sal dos olhos do mar” (menção honrosa, Prêmio Sonangol de Literatura – 1994) e “Simetrias”, para além de títulos em prosa e para o público infantil.

Encontramos neste livro a árdua tentativa de um sujeito poético atrás de uma palavra depurada para estremecer os sentidos anestesiados dos homens, a incessante busca para retomar os valores dispersos pela insensibilidade da contemporaneidade:

Finalmente, eis-nos chegados ao limite: o novo e único caminho que havíamos negado. Atravessá-lo-emos com palavras puras de rosa, com o mesmo salgado da água onde remamos as orações do regresso. (POMPÍLIO, 2008, p. 15)

Atingido o limite, por meio das “palavras puras de rosa” o sujeito lírico ressemantiza os sentidos para ultrapassar a fronteira dos signos esterilizados. Entretanto, a travessia é feita de amargura, pois para resgatar a sensibilidade perdida, precisamos da condução do verbo poético. Para isso, o sujeito lírico convida-nos: “Mostrar-te-ei a cidade dos meus olhos: os cortes súbitos nocturnos e diurnos da luz. Poderás ver, na íris, os musseques húmidos da minha penumbra: os becos escondidos da alegria” (p. 17). É esse olhar perscrutador que nos levará aos “becos escondidos da memória” para, a partir dali, partirmos a uma nova etapa e tomarmos consciência da nossa imobilidade: “Aí poderás, então, chorar todas as sombras do dia: a inauguração da cegueira” (p. 17).

A angústia apodera-se do sujeito lírico, somente a poesia poderá recompor o que o homem perdeu após tantos caminhos equivocados, decisões injustas refletidas no uso incorreto do verbo. Cabe ao sujeito lírico, recorrendo à metapoética, reestruturar o poder estabilizador do verbo: “Apunhalaram a palavra. Feridas crónicas no reverso do verso. O sangue tem a cor da minha voz, no avesso do silêncio. Permite-me abrir a passagem do limite.// Repara. A palavra é uma fronteira. É uma meta fora. A poesia é a água sem a metáfora da mágoa” (p. 46).

Como “no campo das palavras, houve queimadas” (p. 49) e “as palavras não têm passagem para a fronteira do outro lado do mesmo lado” (p. 37), o sujeito lírico pede licença para abrir para nós a passagem do limite da palavra e nos guiará por uma nova trajetória, reconfigurando os sentidos dilacerados da palavra, seus sentidos primordiais, deixando para trás o “abecedário do nada” (p. 26) da atualidade, e assim restabelecendo as “sílabas do silêncio” (p. 21), pois “aqui estamos nós, lutando com a ineficácia dos mundos, onde visivelmente a morte adora morrer: na fronteira. Depois, verás e verás as palavras interagirem na metáfora” (p. 18).

Reconstituir os sentidos da palavra remete à necessária reconstrução do ser para atingir a fronteira e ultrapassar o limite: “Bem-vindo à porta da fronteira/ À entrada da luz do silêncio:/ A metamorfose da cegueira/ O primeiro estágio de tudo/nada./ Seja alegre ao ver (-me) em decomposição” (p. 19). É nessa fronteira que o ser precisa se recompor, renovar o seu olhar, rever os seus conceitos. Diz o sujeito lírico: “A minha fronteira interage com o infinito” (p. 18). E é na expansão ilimitada da fronteira que por consequência acompanha a amplidão semântica da palavra poética, do poeta, da poesia e a do leitor. Afinal, “É preciso desvirginar/ A beleza das coisas/ Para se tornarem maravilhosas” (p. 25) e somente uma poesia que procura navegar na turbulência experimental dos valores semânticos tenderá a atingir o seu objetivo de desestabilizar as (in)certezas do cotidiano, das palavras desgastadas que não atentam para a inércia dos homens. Por isso o poeta semeia e colhe, “Nego as palavras, não a lavra da palavra” (p. 16) por que crê na possibilidade da poesia em transformar os homens.

António Pompílio apresenta uma poesia de interiorização do ser, parecendo resgatar nessa “viagem ao cosmo do eu” (p. 43) os elementos primordiais da natureza (água, ar, fogo e terra) presentes em seus poemas. Viagem para ultrapassar a fronteira, passagem através da poesia e o seu poder de vencer Cronos, “não saí do círculo, apenas transcendi na metafísica do Tempo” (p. 43). Por isso, também, as referências ao universo onírico, livre e ilimitado por si.

Gratificante é percebermos o amadurecimento de um poeta buscando uma estética elevada, percebível no intenso labor demonstrado na segurança dos poemas em prosa – os melhores momentos do livro com a boa medida de prosaísmo que compensam alguns excessos (ou falta deles) presentes na versificação livre. Ressaltamos o esforço de construção de um estilo próprio, de um exaustivo trabalho de depuração da linguagem tecendo os limites da metapoética, das indagações de um sujeito lírico sensível aos problemas de seu tempo e de seus pares, tanto no campo político-econômico quanto no plano ontológico apresentados por António Pompílio neste “Fronteira: a passagem do limite”. Um poeta em pleno amadurecimento poético e recomendamos a leitura do livro aqui exposto. Finalizamos com o poema “Alegria”:

Alegre está o homem que lhe tiraram a alegria do sonho e sonha outros sonhos de ser, porque já não é. E, em toda a paisagem que vê, o sol cumpre a metafísica, iluminando as ruas pobres dos olhos. A alegria é o contentamento da lágrima. E a vida enamora sempre os sentidos do abstracto. Nada há de exacto. Aqui mesmo, sobre a lagoa do riso do bairro Operário, é a bebedeira que comanda o esquecimento. E a vida é bonita, se sonhada com o propósito de viver, vivendo, sem pensar em morrer (p. 50).


BIBLIOGRAFIA:
JUDT, Tony. O mal ronda a Terra – um tratado sobre as insatisfações do presente. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

POMPÍLIO, António. Fronteira: a passagem do limite. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2008.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2010.


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