quarta-feira, 19 de maio de 2010

Ao município da Praia, pelo seu 19 de maio - 152 anos

CIDADE VI


“a arménio vieira, jorge carlos fonseca, osvaldo azevedo,
oswaldo osório, fernando monteiro, armindo silva,
daniel benoni, ludgero correia e fi linto elísio correia e silva,
observadores, amantes e críticos da cidade”

Nós temos uma cidade.
A nossa cidade nem sequer chega a ser nojenta.
A nossa cidade está de nojo.
A nossa cidade está de nojo pelos sobreviventes da cidade.

Estes deambulam circunspectos pelas ruelas de ponta-belém e pelo que sobreviveu das ruas de madragoa, de sá da bandeira, de andrade corvo, de serpa pinto, da república, de cândido dos reis, da horta, da moradia, oh!, pelas antigas ruas cinicamente sorrindo, transfi guradas e ainda aturdidas sob as vestes e os nomes heróicos das placas toponímicas recém-colocadas.

Prosseguem pela pracinha da escola grande, constatam que, entre os canteiros descuidados e as fl ores devassadas, a mesma continua estranhamente ostentando o nome original do poeta de os lusíadas e a estátua em bronze do doutor lereno, ilustrativa das suas benemerências de médico humanista.

Continuam até à pracinha do liceu, descansam por momentos aprazíveis nos bancos dos jardins fl oridos e, maquinalmente, recitam os versos de camões ainda inscritos nos azulejos azuis exaltantes da expansão portuguesa e que estoicamente sobreviveram aos tumultos estudantis que se seguiram ao golpe de estado do 25 de abril de 1974.

Postam-se depois nos muros avarandados da cidade e lançam olhares tristes sobre a imensidão dos subúrbios. Planam o olhar pelas silhuetas de ponta-de-água, da achada eugénio lima, da achada grande, do paiol, da fazenda, de lém-cachorro, do castelão, da vila nova, da achadinha, de pensamento, de safende e de outros bairros postados contra a longínqua imponência das montanhas do interior da ilha e o translúcido e majestoso vulto do pico de antónio.

Tranquilizam-se e ao seu espírito inquieto deambulando imaginariamente pelos jardins do parque 5 de julho, complexo recém-inaugurado com enjoativas pompa e circunstância acompanhadas dos discursos heróico-cavalgantes do costume. Admitem a contragosto que o parque se tornou lugar emblemático da cidade, seu pulmão verde e centro de diversões nocturnas e de diurnos e apaziguadores multi-usos. Embevecidos, fi xam-se nos perfi s das suas duas casa padja, felizes recriações modernas e vagamente monumentais das antigas casas rurais cobertas de palha para a realização de colóquios, concertos, mesas-redondas, seminários e conferências internacionais, tão destes ofuscantes tempos, embebidos de petulância e de promiscuidade entre os fi lhos de gente antiga, branca e fi na e filhos de pés descalços, enfatuados o quanto baste nas suas vestes e poses de doutores recém-licenciados em universidades comunistas dos países de leste.

Agitam-se, tomados de maus agoiros, com o pressentimento da breve decadência desse novo rosto da cidade e de outros novos rostos, como, por exemplo, o centro social primeiro de maio, o restaurante hong kong (obviamente de indecifráveis comerciantes chineses), todos marginando a avenida cidade de lisboa, de nome inegavelmente auspicioso mas construída, imagine-se, nas circundações dos bairros suburbanos da achadinha e da várzea e dos casebres do taiti.

Cidade de lisboa… quedam-se saudosos na silenciosa evocação das férias graciosas passadas ou imaginadas na capital do império e cogitam demoradamente na obstinação desses antigos combatentes do mato agora reciclados como sagazes salvadores da pátria por mor da sua astúcia na arrecadação das ajudas internacionais. Fogo fátuo, condenado à lenta extinção, profetizam pessimistas, por efeito do mero cansaço dos doadores internacionais, agora promovidos a parceiros estrangeiros do desenvolvimento, afi nal meros substitutos dos congeminadores metropolitanos dos antigos planos de fomento que tantas escolas, estradas e postos sanitários trouxeram à província ultramarina. Afinal, meros sósias sem a glória da pátria e a grandeza do império!

Desistem de imaginar o burburinho que irá por achada de santo antónio, tira-chapéu (ou frouxa-chapéu, para os mais renitentes) e outros subúrbios das proximidades do mar, agora envaidecidos pela presença próxima da antiga placidez das moscas e das alimárias e das hortas miraculadas do palmarejo, de símbolos do poder como o palácio da assembleia nacional popular, as embaixadas da união soviética, da china e de portugal, de vivendas e residências de ministros, juízes, directores-gerais, inspectores das fi nanças, auditores das alfândegas e outros altos funcionários do estado.

Dir-se-ia, pensam de si para si e nos subúrbios que se estendem defronte dos seus olhos indignados, um extenso mercado de candongueiros, um roque santeiro luandense ou um imenso acampamento de exércitos hititas prestes a invadir ménfis, tebas e outras cidades egípcias e a destruir a grandeza das suas pedras multisseculares e a magnificência das suas memórias milenares.

Atravessam a rua do hospital. Alguns dos sobreviventes da cidade encarceram-se no pavilhão dos alienados, dementes e possessos da quinta enfermaria do hospital central “agostinho neto” para sessões de consulta psiquiátrica e de meditação sobre o tempo e a cidade ou, melhor, sobre os tempos da cidade.

Conspícuos, os habitantes da cidade apresentam condolências ao quase-cadáver sorridente da cidade. As melhores condolências, asseguram, são as que se apresentam aos sobreviventes, as únicas vítimas de algum mérito e merecedoras de autêntica pena, escárnio que baste e muita condescendência. Afi nal, verdadeiros mortos-vivos, são eles irrefutável memória e assídua presença das ruínas do futuro! Ah! os sobreviventes da cidade!

Nem sequer acreditam na ressurreição do seu lugar de natalidade. Espavoridos e insólitos, sentados na plácida e obesa comodidade das tocatinas e das conversas de fi m de tarde nos bancos da praça grande, observam o crescer dos prédios, a abertura de novas avenidas, o calcetamento de novos arruamentos (e, fantasiam, a asfaltagem e, extrapolam, quiçá a pavimentação artística de vias exclusivamente destinadas aos peões), a alegre devoração e as doces guerras dos festivais de música, a consonântica (mas, admitem, melodiosa) desfaçatez de alguns dos recém-chegados …

Com um certo temor e muito a contra-gosto digerem o impúdico abraço entre o plateau e os subúrbios. Por isso, declinam os convites para as inaugurações de empreendimentos turísticos e de modernas vias rápidas que, cogitam, pretendem unifi car as achadas, achadinhas, várzeas, colinas, encostas e ribanceiras numa, profetizam sarcásticos, cidade-menina do atlântico.

Meditativos, os sobreviventes da cidade revisitam os lugares da infância e, pressurosos, lamentam o entranhado lixo da cidade, a proliferação do comércio ambulante e das quotidianas feiras debugigangas, a ruína de lojas tradicionais emblemáticas (como a casa serbam, a loja herculano, a casa feba, as galerias-praia), a caótica degradação dos bairros, o terramoto da miséria e do êxodo rural, a invasão dos bárbaros que, dizem, são os sampadjudos das as-ilhas, os badios de fora (das aldeias, dos cutelos e das vilas do interior da ilha), os cooperantes de carteiras recheadas e olhos claros omniscientes, os mandjacos (negros, animistas e muçulmanos da costa de áfrica), os comerciantes chineses que, escudados na monumentalidade do palácio da assembleia nacional popular na achada de santo antónio e no baixo preço dos produtos importados da sua ásia natal, vêm arruinado os comerciantes locais, não se coibindo sequer de se juntar aos rabidantes indígenas das ilhas e instar os mandjacos a irem para a sua terra, a regressarem às suas cubatas aldeãs e suburbanas…

Enfim, e para culminar, constatam consternados a negra veracidade do que os petulantes da cidade denominam a plena dakarização das ruas, das mentalidades, da cidade...

Em conversas segredadas asseveram que enquanto uns invadem os leitos das ribeiras e as encostas (como se pode verifi car in loco na chamada embaixada (ou encosta) dos sampadjudos, sobranceira ao subúrbio das vila nova), e constroem bairros de barracas e casebres sumamente degradados em safende, vila nova, et cetera, et cetera, outros ocupam a beira-mar e refastelam-se nas vivendas e outros rostos recentes e outros recantos antiquíssimos da capitalidade, remetendo os sobreviventes da cidade para a insignifi cância e a amnésia, para a triste irrelevância de moradores antigos e primeiros da capital, cidade cantada e vilipendiada como rochosa transfiguração da velha e antiga metáfora de cidade santa, urbe reiterada e secularmente mal-amada por alguns conhecidos forasteiros que nela e noutras reinam e todavia reivindicam.…

Sentados no cruzeiro, os sobreviventes da cidade observam o mar e a sua possível transfi guração em trilho para o além, em viagem ou suicídio desde que represente uma forma defi nitiva de fuga ao corpo putrefacto da cidade.

Cidade despojada da praia negra e dos seus coqueiros e pic-nics, substituídos pelos dejectos da fábrica de cervejas e pelo cheiro nauseabundo dos tanques onde vão sendo experimentadas novas formas de energia renovável sem qualquer utilidade prática imediata ou visível.

Cidade despojada da memória do verde, dos pássaros cinzentos e do canto do bico de lacre no taiti e nas antigas florestas circundantes do bairro craveiro lopes e da fazenda, para sempre extintas.

Sentados no cruzeiro, sob os auspícios e a ferrugem dos canhões antiquíssimos e a proximidade das conversas dos moradores dos apartamentos pequeno-burgueses dos prédios do ténis, os sobreviventes da cidade são tomados de um imperecível desejo de evasão da cidade carregada de vento, pó, ruas esburacadas e sobrepovoada de insolentes animais, racionais e irracionais, domésticos e exóticos.

Sentados no cruzeiro, os sobreviventes da cidade cogitam, utópicos e visionários, e ante os seus olhos confi guram-se as imagens de uma longa avenida marginal estendendo-se, asfaltada, iluminada e movimentada, da gamboa, passando pelo porto, até à praia da mulher branca, com as devidas e modernas bifurcações para um mais moderno aeroporto internacional e os remodelados bairros de lém-ferreira, ponta-de-água e achada-grande-trás…

Pesarosos, os sobreviventes da cidade debruçam-se sobre as trucidadas flores da praça grande, das pracinhas da escola grande e do liceu adriano moreira (os sobreviventes da cidade recusam-se a pronunciar o novo nome do liceu, domingos ramos, guinéu e comparsa semi-analfabeto de, imagine-se, outros terroristas, ou de modo mais eufemístico, combatentes do mato, em boa hora neutralizados, como amílcar cabral, josina machel, eduardo mondlane, chico té, che guevara, justino lopes, jaime mota, ludgero lima e o ainda mais execrável kwame nkrumah…).

Crispados, os sobreviventes da cidade cogitam sobre a futura reposição da verdade dos lugares e dos seus nobres e pátrios nomes, como craveiro lopes, alexandre albuquerque, andrade corvo, serpa pinto, sem, obviamente, esquecer os heróis de mucaba…

Os sobreviventes da cidade rezam sobre as ruínas da cadeia civil e dos sobrados coloniais amarelecidos pelo tempo e pela decrepitude, os quintais de algumas casas térreas de persianas verdes, janelas envidraçadas e soalheiras meias-portas e outras casas típicas do planalto da cidade da praia, urbe outrora chamada de santa maria da esperança e da vitória.

Os sobreviventes da cidade indignam-se com a transfi guração do planalto (recapitulam: capital de facto das ilhas de cabo verde desde o abandono da cidade velha em 1776 e capital ofi cial da província ultramarina desde 29 de Abril de 1858) em reles e francófono plateau de uma cinematografi a, na qual a cidade se transmutou em mero figurante numa vilã miríade de subúrbios.

Os sobreviventes da cidade continuam deambulando pelas ruelas e constatam com alívio, orgulho e alguma vaidade que os moradores das casas mais modestas dos quarteirões mais pobres do planalto-capital recusam terminantemente a deportação para o longínquo bairro da terra-branca (branca de novos ricos indígenas e de cabelos loiros cooperantes, dizem sarcásticos) ou para qualquer achada, achadinha ou ribeira, todas fl ageladas pelo cinzento, pelo abandono, pelo caos, pelo despojamento de urbanidade, por todo o tipo de carências, pela ausência de qualquer memória urbanística e, sobretudo, pela irremissível circunstância de serem baxu-praia, abaixo da praia, sub-praia…

Os sobreviventes periféricos e suburbanos do planalto-capital preferem ser despejados. O cubículo ou a casa térrea de dois ou três quartos e muita promiscuidade não se salva, mas ao menos salvam-se a honra e a dignidade de indefectíveis praienses. Ocupa-se a praça e abre-se escritório de conversador na esplanada central da cidade, no restaurante avis ou no café cachito ou abanca-se como engraxador de sapatos na praça alexandre albuquerque (arremetem os auscultadores da cidade: mas a polícia nega-se a fazer reluzir as botas na praça “12 de Setembro”. Quando for o caso não há-de a polícia precisar de botas reluzentes. Abaixo o boato e a paranóia!)

Os habitantes da cidade estão de nojo. Pelos sobreviventes da cidade ou por si próprios.
Milhafres e vampiros debicando o cadáver da cidade. Persistentemente. Diligentemente.

Os habitantes da cidade estão de luto. Pela cidade e por si próprios.
Cadáveres futuros sobre o corpo arruinado da cidade.
Irremediavelmente.

Dizia eu, nós temos uma cidade.
A nossa cidade e os seus habitantes nem sequer chegam a ser nojentos.
A nossa cidade e os seus habitantes estão aparentemente de nojo.
Estão de nojo pela cidade e pelos sobreviventes da cidade.
Magnanimamente.

(poema atribuído ao heterónimo Erasmo Cabral de Almada)

(ALMADA, José Luis Hopffer. Praianas. Praia: Spleen Edições, 2009. p. 115-121)

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