quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Andrade – craque dentro das quatro linhas, craque como técnico-estrategista, orgulho afrodescendente

por Ricardo Riso

Um aspecto importante do jogo em que o Flamengo pode se tornar campeão brasileiro não vem sendo abordado pelos grandes meios de comunicação e que poderia motivar as complicadas relações étnicorraciais na sociedade brasileira: trata-se do técnico rubro-negro Andrade, que poderá se tornar o primeiro técnico negro a ser campeão do principal torneio nacional. E por uma feliz coincidência, o jogo decisivo será no Maracanã, cujo nome oficial é o do autor do histórico livro “O negro no futebol brasileiro” (1947), Mário Filho, irmão de Nelson Rodrigues. Filho, em seu trabalho pioneiro, aponta as discriminações sofridas pelo negro para ser aceito no meio do futebol.

O negro no futebol brasileiro só aparece com destaque como jogador. Foi assim desde que o ludopédio se instalou em nossas terras ao final do século XIX. De esporte de elite proibido aos negros, foi se popularizando entre as classes populares e, somente em 1923, que um clube abriu as portas para jogadores negros: o Vasco da Gama. Aos poucos, os afrodescendentes foram ocupando os espaços nos clubes e na seleção brasileira, mas o jogador tinha que seguir a máxima de que “não basta ser bom, é preciso ser o melhor” para ser aceito.

Talvez o período em que o racismo tenha sido escancarado no futebol tenha acontecido na derrota para o Uruguai, na final da Copa de 1950, no supracitado Maracanã. Naquela ocasião, o jogador Bigode e o goleiro Barbosa foram acusados como os responsáveis pela derrota brasileira por não conseguirem impedir o atacante Ghighia de marcar o gol da vitória. Esse acontecimento motivou a imprensa e parte da sociedade a exigir que negros e mestiços não fossem mais convocados para a seleção. Uma profunda bobagem, pois, passados oito anos, o Brasil seria campeão do mundo na Suécia com o mestiço e genial Garrincha e os negros Pelé (que se tornaria o Rei do Futebol) e Didi. Este, eleito o melhor jogador da competição.

Entretanto, a discriminação não poupou seus esforços. Barbosa sempre foi lembrado por sua falha e, em 1993, o ex-goleiro, já um senhor, talvez tenha sofrido a sua maior humilhação. Ele quis visitar os jogadores da seleção que estavam concentrados para um jogo das eliminatórias da Copa de 1994, mas foi proibido de entrar no hotel. Muitos goleiros negros sofreram com essa “maldição”, tanto que a seleção brasileira só voltou a ter um arqueiro afrodescendente com Dida na Copa de 2006.

Contudo, o racismo não se apresenta apenas dentro das quatro linhas. Só encontramos negros ocupando funções menores como roupeiros e massagistas, ainda assim imprescindíveis, nos clubes, mas jamais postos de liderança. Entre dirigentes e presidentes não vemos afrodescendentes trabalhando nesses cargos nos principais times do país. Essa reflexão pode ser ampliada à presença negra entre árbitros e jornalistas esportivos. Por coincidência, mínima também.

Por isso, o momento atual de Andrade como técnico e a expectativa do título brasileiro força-nos a pensar e a discutir as relações étnicorraciais dentro do futebol, principalmente por sermos a “pátria de chuteiras”. Por conseguinte, as práticas no futebol refletem a nossa sociedade.

Para ser técnico é preciso que o pretendente possua algumas características como liderança, conhecimento tático e capacidade intelectual. Nenhuma delas é associada ao jogador negro que se vale de sua força física para compensar a inteligência reduzida e do dom natural para minimizar suas falhas táticas no esquema do time. Isso já serve como justificativa para que o ex-jogador negro seja incapaz para exercer a função de técnico, pois lhe faltaria a sapiência que um estrategista deveria ter. Ou seja, depreendemos que na mentalidade do futebol brasileiro permanecem os discursos positivistas do final do século XIX.

Entretanto, parece que Jorge Luís Andrade da Silva, o Andrade, quer mudar a história e mostrar que o afrodescendente é capaz sim, desde que tenha oportunidade de trabalhar. De 2004 para cá, Andrade já assumiu o clube como interino em três ocasiões e sempre entregou o time em situação melhor que quando entrou. Foi menosprezado por Cuca que chegou a colocá-lo para compor barreira em treinamentos e ouviu do atual goleiro Bruno, seu comandado, após uma discussão durante um treino que “ele poderia ter ganho tudo como jogador, mas como técnico ele não era ninguém”. Claro que Bruno foi execrado pela torcida e pela imprensa esportiva, indignados com o seu desrespeito a um ex-craque rubro-negro.

Como vemos, o Tromba, como era conhecido por seus companheiros no tempo de jogador, enfrentou situações desconfortáveis mas jamais veio a público reclamar por qualquer injustiça dentro do Flamengo. Sua resposta veio com o retrospecto da passagem atual pelo comando da equipe, em 2009 realiza seu melhor trabalho.


Até agora sua postura como técnico desde que foi efetivado pela diretoria, tem se caracterizado pela serenidade, controle emocional e humildade ao segurar a euforia dos jogadores e exaltar o trabalho do grupo; conhecimento tático ao buscar alternativas ofensivas e romper com o passado “retranqueiro” que dominou o Flamengo desde a passagem do técnico Joel Santana em 2007; educação e inteligência no trato com a imprensa não exibindo a truculência e a arrogância dos principais técnicos do Brasil, os “professores doutores” do futebol.

Além disso, Andrade é parte da história do Flamengo, exatamente no seu momento mais glorioso. Ele era o cabeça-de-área do time campeão do mundo liderado por Zico, o que o faz ter o carinho e o respeito da torcida. Enquanto jogador rubro-negro conquistou quatro títulos estaduais, quatro nacionais, uma libertadores e um mundial. Passou pelo rival Vasco da Gama e ganhou mais um brasileiro. Se a memória não me trair, Andrade é o jogador com o maior número de títulos nacionais desde que a CBF criou o campeonato brasileiro: cinco.

Na minha infância e adolescência ia muito aos jogos daquele grande time do Flamengo. Recordo-me que Andrade, ao início das partidas, sempre procurava enfiar a bola entre as pernas de seus marcadores (a famosa “caneta”), inflamando a torcida a empurrar o time para o ataque. E foi assim, de caneta em caneta que Andrade conseguiu romper o preconceito, se firmou como técnico e poderá viver mais um momento histórico no futebol caso seus comandados conquistem o título. Além disso, se tornará mais um motivo de orgulho para a população afrodescendente brasileira.

10 comentários:

Denise Guerra disse...

Oi Ricardo, Muito Show sua postagem, bem argumentado na prática e bem elaborado nas justificativas. Não sabia que vc jogava nas 11 e ainda batia um bolão!!!Bjs!

Wanasema disse...

Olá, Denise!!
Futebol é a minha outra paixão! E há muito o que se discutir dentro e fora das quatro linhas, principalmente sobre o racismo que sempre acompanhou o esporte.
Muito obrigado pelos elogios!
Abraços!!!!

Unknown disse...

Gostei do artigo. De fato a imprensa sequer menciona a novidade. Ainda falta muito para nos tornarmos um país socialmente igualitário.

Norma Lima disse...

Viva o Glorioso Vasco da Gama!
E tenho dito.

Wanasema disse...

Oi, Vitor!
Por isso a necessidade em divulgarmos essas discriminações. Um dia isso diminuirá.
Obrigado pelo comentário.
Abraços!

Wanasema disse...

ahahahahahah!
Norma sempre impagável!
bjs!!

Anônimo disse...

Sou Fluminense, mas torci pelo Andrade e em consequencia pelo título. Agora, espero que ele vá ganhar muito dinheiro no exterior, pois o racismo no futebol brasileiro está longe de acabar. Parabéns Andrade, parabéns Flamengo.

Wanasema disse...

Concordo que está longe de terminar, Anômino! Mas creio que ao expor cada vez mais a desigualdade racial, ajudará a acelerar as mudanças por uma sociedade justa.
Obrigado pelo comentário e foi bonita a arrancada do Fluminense. Torci por ele também. Aliás, por todos os cariocas.
Abraços,
Ricardo Riso

Tchale Figueira disse...

Oi Ricardo: Eu tambem sou um apaixonado de futebol e é uma historia de gerações na minha familia. Aqui em Cabo-Verde felizmente o racismo nunca existiu no futebol. No tempo colonial, aqui em Cabo Verde, quem tinha dinheiro, mesmo sendo negro, chamava-se de gente "Branca" o que não deixava de ser uma forma de racismo criado pelo colono inferiorizando os negros com uma estratégia economica.Mas são águas pasadas. No teu Brazil vejo que ainda há muito que fazer mas são com pequenas escaramuças que no final ganhamos a "Guerra". Parabens ao Andrade e ao Flamengo.
Um abraço des de Cabo-Verde. Tchalê

Wanasema disse...

Oi, Tchalé! Tudo bem?
Interessante o que mencionou sobre a gente "branca" no futebol do seu país em tempos passados. Depois vamos retomar este assunto.
Por aqui ainda engatinhamos nessa luta, mas melhorará. Certamente, melhorará.
Mantenhas amigas,
Ricardo Riso