sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Filinto Elísio - Vamos comer Caetano (crônica)

O amigo Filinto Elísio, escritor de Cabo Verde, enviou para o blog a crônica inédita abaixo.

VAMOS COMER CAETANO

Por Filinto Elísio

Tudo caía devagar. Como poeira a assentar-se. Primeiro, a sensação de flutuar, de coisa suspensa. Depois, essa nítida descida. Real. Visível. De queda tão simplesmente. O velho André cogitava, armado em Isaac Newton, o comportamento das maçãs e descobria, também ele, as leis da gravidade. Devagar. Como se duas forças contrárias, interagissem nesses corpos. Um a impelir para o chão; outro a puxar para o vão. De novo, dando ares de douto, disse: “A força que atrai tudo para o Nilo e a resiliência do Sol sobre tudo”. Jacira olhava-o com comiseração. Sofria da Doença de Parkinson. Se calhar, por isso, aquela conversa sobre a dialéctica das coisas. Ela entendia mesmo de cuidar do velho. Banhos, refeições e passeios, além de longas conversas sobre a Praia daquele tempo. Caem folhas, cai tudo. Assim como tudo gira com a terra, o sol e o universo. Tudo gira, como cai. Devagar…

Contava-te isso no van que nos levava do Hotel San Marino, na zona do Farol da Barra, à Universidade Federal da Bahia. Descrevia-te o dissecar do velho André, aparentemente senil, em personagem central do livro em acção. Passava por detalhes sórdidos, esses de puxada intimidade, entre o velho e Jacira, empregada que se vestia de branco, quase sempre dos acontecidos nos banhos, rara ocasião em que o octogenário se sentia erecto. Eréctil, para ser mais preciso. E esse sol que batia na orla de Salvador em Setembro, "sol de macaco" nas ilhas por Janeiro, me fazia lembrar da trama do romance em que diversas personagens (na maioria, mulheres) escrevem elas próprias suas notas, cartas e apontamentos. Olhavas-me, com alguma magia, não que se instalasse ali qualquer química entre nós, como se tudo tivesse de acabar em beijo, mas porque estavas à minha mercê para navegarmos até ao fim do livro. “Apenas os azimutes e um pequeno abstract”, fui logo avisando. E tu, numa sonora gargalhada, estiveste bem à altura: “Só o velho André não me serviria para a tese de mestrado. Teria de ser o livro todinho, meu poeta”…

Mais tarde, deambulando pelo Centro Histórico de Salvador, abria-te, qual rosa fenecida, as pétalas do meu livro. E tu, já querias saber se Luana era de Denise alter-ego. Ou vice-versa. E se John era labrego. Ou carregava nele o herói e o anti-herói. E, mesmo, se Lídia, aquela do Franklyn Park, era verdade. À porta da Casa Fundação Jorge Amado, numa ladeira que se esvai para a Baixa do Sapateiro, demos de cara com um Preto Velho, desses aos montes, a entreter turistas espanhóis. E tiramos umas fotos com ele. Quiseste saber se o homem parecia o velho André do meu romance. Mas não. Olha que não parecia. O velho André era mais alto e elegante, mestiço de tez e olhos verdes. Filosofava para lá de Sartre e Camus. E padecia da Doença de Parkinson. Ah! Este não tirava fotos por vinte reais. E aí aquela tua gargalhada de sol largado. Mas ele poderia ser baiano, sim senhora. Que nem João Ubaldo Ribeiro…

Agora caia o sol. Devagar. Além, perceptível à bruma, a ilha de Itaparica. Juravas que a melhor moqueca de siri seria numa tenda da Barra, jusante ao hotel onde nos alojávamos. E parecia ser, de facto. Durante o jantar, estavas eufórica com os 100 anos de Dona Canô, pela graça de Santo Amaro de Purificação, dizias. Menos devoto e esotérico, contei-te de um amigo arquitecto que se imaginava em altas bebedeiras com Caetano Veloso na Baixa de Sapateiro. Era um Caetano inventado, mas brilhante e quase de verdade. Voltávamos à questão da verosimilhança. E aí, diante de uma cerveja estupidamente, entoámos a música de Adriana Calcanhoto: “Vamos comer Caetano. Vamos começá-lo!”. Devagar…

Fonte: e-mail gentilmente enviado pelo escritor Filinto Elísio em 09/10/2009.

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