sexta-feira, 8 de maio de 2009

Roderick Nehone – Uma Bóia na Tormenta (RESENHA)


Por Ricardo Riso

Quase trinta e cinco anos após a conquista de sua independência, Angola vivenciou momentos ora felizes, ora conturbados. Imprecisos e tortuosos como deveriam ser os caminhos de uma nação periférica que procura se posicionar na aparente calmaria do modelo neoliberal vigente no mundo. Da euforia comunista dos primeiros anos do país à grave crise que se espalhou nas décadas de 1980/90, motivada pela guerra civil, ao fim do sangrento conflito no início deste século, com a entrada desenfreada do capital estrangeiro aproveitando-se da estabilidade política, Angola, mais precisamente sua capital Luanda, com suas peculiaridades e contradições, sempre foi um terreno fértil para os escritores. Que o digam, apenas para citar alguns prosadores, José Luandino Vieira, João Melo, o jovem Ondjaki e Roderick Nehone.

O mais recente lançamento de Roderick Nehone, “Uma bóia na tormenta” (Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2007) apresenta doze histórias em suas 103 páginas, onde a cidade de Luanda é também protagonista. Todavia, antes de iniciarmos os comentários sobre os contos, cabe aqui um breve resumo do autor.

Roderick Nehone é o pseudônimo literário de Frederico Manuel dos Santos e Silva Cardoso. Nasceu em Luanda a 26 de março de 1965. Aos 24 anos concluiu a licenciatura em Direito na Universidade Central de Las Villas, Cuba. Foi docente na Universidade Agostinho Neto de 1991 a 2004. É membro da Ordem dos Advogados de Angola e vice-presidente da União dos Escritores Angolanos (UEA). Nehone vive em Luanda. É autor das seguintes obras: “Génese (poesia - Prémio António Jacinto de Literatura, 1996), “Estórias Dispersas da Vida de Um Reino (Contos-Prémio Sonangol de Literatura, 1996), “ O ano do Cão (Romance-Prémio Sonagol de Literatura, 1998), “Peugadas de Musa (Poesia, 2001) e “Tempos sem Véu (Romance, 2003).

Em entrevista disponível no site da UEA – http://www.uea-angola.org/ –, Roderick Nehone (RN) faz uma declaração que corresponde bem ao que será encontrado em seus contos: “É fundamentalmente o retrato de um cidadão interessado nos problemas da sociedade que o rodeia. É o retrato de um homem preocupado com os problemas da época que lhe corresponde viver.”

É a partir deste olhar atento à sociedade de sua cidade, às dificuldades econômicas, aos problemas sociais adicionados a uma percepção sutil e acusatória da atuação dos políticos angolanos que Nehone realiza o leitmotiv de suas narrativas. Valendo-se de um narrador onisciente e onipresente que procura privilegiar os valores éticos e passar a mensagem de uma vida digna distante da corrupção, ganância e insensatez predominante entre as classes abastadas de Angola, vorazes e sedentas com os altos investimentos feitos pelas empresas estrangeiras, o autor busca contrapor com sua literatura. Tarefa encarada por quem crê no poder transformador do Verbo.

Utilizando-se de certo didatismo para expor situações adversas, porém encaradas com perseverança e elevada autoestima pela personagem Lalito em “O salto”, o narrador conta a história de um jovem deslocado pela guerra que chega a Luanda, mora sob a marquise de um prédio e faz bicos como guardador de carro e outros pequenos serviços manuais. Contudo, jamais perdeu a esperança de um dia retomar os estudos, pois sabe da importância da formação educacional para alcançar seus sonhos:

Não sei se pelos meus sonhos, ou por uma coisa de espírito forte, eu creio que aquilo que me proponho vou alcançar. Penso forte na coisa, penso sempre, penso com energia e ajo no sentido de realizar o que penso. Demora às vezes, mas já aconteceram comigo muitas coisas que pensei. É preciso acreditar que podemos e, depois, lutar para alcançar. (p. 23)

O conto “O angolano também pode” explora a desconfiança daqueles que não creem que um angolano pode obter sucesso sem ajuda estrangeira ou tendo uma postura subserviente perante este. Trata-se da história de dois homens que cresceram juntos, mas a vida foi ora afastando-os, ora aproximando-os. Até que atingem a idade adulta no pós-guerra civil angolano e se reencontram. Um se tornou professor universitário com salário humilde e aspira uma carreira política de sucesso, enquanto o outro se transformou em um importante empresário que construiu seu império atuando em diversas áreas. Entretanto, jamais se submeteu ao capital estrangeiro, comandando seus negócios e trabalhando apenas com angolanos, o que gera incredulidade no antigo companheiro, que pensa, como a maioria dos angolanos, ser impossível um patrício obter sucesso por conta própria:

Está fácil de mais fazer dinheiro nesta terra. Os brancos têm razão. Mas, eles vêm com bancos atrás e com tecnologia (...) Com faro para detectarem as oportunidades de negócio aqui no mercado e, naturalmente, é só chegar e facturar. Agora, um patrício? (...) afinal de contas, deve ser apenas um movimentador nativo do cumbu (dinheiro) do estrangeiro, pras compras e vendas locais. O dinheiro de bolso para pagar os empregados nativos, comprar combustível, dar umas gorjetas aos fiscais, e liquidar mais uns etecéteras para que os seus próprios conterras não lhe perturbem o negócio. Um estafeta bem vestido, afinal de contas. Um mwangolê (angolano) atrevido fantasiado de empresário. (p. 37-38)

Dando continuidade às críticas ao modo de pensar do angolano, em “Nós temos que estar lá” a personagem Jangolê, o bem-sucedido empresário do conto anterior, cobra uma mudança de postura de seu primo quando este obtém ascensão social. Jangolê encontra-o e fica feliz ao saber que está muito bem conduzido em sua carreira. Entretanto, não frequenta os lugares que sua atual condição financeira permite. O empresário convence-o que tais ambientes devem ser ocupados pelos angolanos também – uma questão de afirmação social (p. 44) –, como mostra a passagem abaixo em um restaurante:

Há muitos que podem cá vir, mas não vêm. Não desenvolveram o hábito de progredir. Preferem a quantidade de vida à qualidade de vida. E, isso, tem as suas conseqüências, também políticas. (...) Olha, agora, ao nosso redor. Estamos aqui em minoria. E podíamos fazer maioria aqui. Porque os mwangolês que têm alguma coisa, seriam bastantes para fazerem maioria em todos os restaurantes e esplanadas deste país. (...) O que importa é estar. (...) Nós temos que estar aqui, para tornamos, de facto, nosso país este, que por direito é nosso. (p. 47)

A preocupação com os valores éticos e com o comportamento do angolano por parte do narrador, justifica-se por causa dos péssimos exemplos da classe política do país que se mostra prepotente, arrogante, inconsequente e irresponsável quando se trata dos interesses da nação, colocados em segundo plano diante de escusos interesses pessoais. O uso da força, o abuso de poder e a certeza da impunidade são evidenciados no conto “Aqui é só vusar”, ao apresentar a postura dos dirigentes angolanos a partir de uma caravana conduzida de forma irresponsável por uma estrada. Valendo-se da posição oficial, seus motoristas cometem as maiores barbaridades no trânsito, causando indignação e revolta em um simples cidadão:

O sacana do condutor, sem batedor, nem nada à frente do carro dele, acelerava, driblava, como se a estrada fosse um corredor da casa dele. Mas, o carro feio não vinha só. Era o primeiro de uma caravana de seis, com matrículas anormais, não interessa agora, detalhar mesmo qual era o defeito igual de todas elas, todos trungungueiros (brutamontes), a quererem mandar na estrada, como se esta Luanda e o país inteiro fosse deles. (...) Afinal de contas, este país é de todos nós. Só a força das armas procurou tornar uns mais angolanos do que os outros. Só a coação, a impunidade, pode fazer com que uns se sintam obrigados a ver com impotência os seus direitos serem vilipendiados. (p. 27-29)

“O enterro de Burrocrata” é o mais contundente, áspero e feroz conto contra a burocracia que emperra o país. Trata-se dos estranhos acontecimentos no enterro da personagem-título, funcionário público odiado por todos em razão da sua total falta de escrúpulos e solidariedade com o próximo, que se aproveita da sua posição privilegiada para criar todo e qualquer tipo de entrave nas vidas das pessoas e das empresas que querem regularizar suas pendências com os órgãos públicos. O livro de condolências é preenchido por várias pessoas, tornando-se o espaço para as descrições das atrocidades cometidas pela personagem ao longo de sua vida e dos constantes abusos realizados por ela.

Para qualquer coisinha de nada, pedia o Registo Criminal. (...) Se não fosse o Registo Criminal, era o Atestado de Saúde. Como se isso não bastasse, o requerimento tinha de ser em papel de vinte e cinco linhas, selado e sem rasuras. A fotocópia do Bilhete de Identidade não podia faltar. Noutros casos, exigia o Atestado Médico, mesmo sabendo que este podia ser facilmente falsificado por um falso médico no Roque Santeiro. E, enquanto andávamos de um lado para o outro, a tratar de toda a papelada, a oportunidade do negócio passava, às vezes, sem deixar mais rasto. (p. 65)

Durante o enterro, cai uma chuva torrencial simbolizando o novo tempo de um Estado em prol do desenvolvimento do país e em harmonia com os interesses de seus cidadãos: “Era uma chuva alegre, colorida, que parecia estar contente com o fim de Burrocrata. (...) Que depois da morte de Burrocrata, a vida deles fluiu melhor (...) Houve mais negócios, mais trabalho e mais dinheiro nas mãos, até do mais anônimo cidadão.” (p. 67-68)

Os problemas gerados pelo superpovoamento e pelo cotidiano caótico da cidade de Luanda são retratados por Nehone no conto “Catrapus!”. A partir da iniciativa da personagem Zazalí, um canguleiro (carregador) que trabalha no mercado Roque Santeiro (famoso mercado popular de Luanda, seu nome foi inspirado na novela homônima brasileira), e sua visão comercial ao investir em cangulos (carrinhos-de-mão) para transportar as compras dos clientes. Zazalí obtém rápida ascensão social aumentando o número de seus carros e funcionários, até se tornar o Rei dos Cangulos, valendo-se da força física e da influência que passou a exercer dentro do mercado: “como tal, era respeitado, idolatrado por uns e odiado por outros” (p. 10).

Zazalí passa a ter centenas de cangulos e os que não eram seus somente circulavam no Roque se seus donos pagassem uma taxa a ele. Com o tempo, investiu na fabricação de cangulos para carregar passageiros e determinou que todos os clientes deveriam ser carregados pelo mercado. Essa situação levou-o a pensar no trânsito caótico da cidade e seus “engarrafamentos intermináveis”, que faziam com que as pessoas levassem horas para chegar aos seus destinos:

“a pontualidade já era. A assiduidade era mandada para as urtigas. (...) Ninguém tinha moral para exigir pontualidade a ninguém, nem mesmo os chefes, porque estes também se atrasavam. (...) Como ninguém se sentia culpado pelo que estava a acontecer, ninguém justificava nada a ninguém. Como todos se sentiam prejudicados, não aparecia nenhum culpado. Era a total paralisia, enquanto a cidade definhava, porque deixaram de produzir. Porque todos estavam atrasados, tudo ficara atrasado. Toda a vida das pessoas era, agora, refém do engarrafamento (p.12-13)”.

Diante desse quadro, “era, então, aí que, de repente, surgia nas ruas um caricato show de retrocesso” (p. 12), o narrador começa a descrever como os cangulos de Zazalí expandiram-se do Roque Santeiro para as ruas de Luanda:

Circulavam entre os carros, subiam para os passeios, desciam novamente para a estrada, deixavam os passageiros nos lugares acertados e prosseguiam com a nova carga. De tão estreitos que eram, e movidos à tração humana, não necessitavam de espaços largos para passarem, nem de gasolina para se moverem. (...) A lentidão do transporte de cangulo era tal que, na verdade, a velocidade era mesmo a do passo humano. A única diferença era a de que o cangulado chegava menos cansado que o canguleiro. Mas, tudo a passo de homem. (p. 14)

Com isso, o Rei Zazalí toma uma decisão insólita ao perceber que os luandenses não precisam mais de relógios: “Deu-se conta de que com aquele passo, pelo menos durante o sufoco dos engarrafamentos, o tempo deixara de ter sentido nas fábricas, gabinetes, escritórios, enfim, na vida das pessoas. (p. 14)” E passa a comprá-los a preços baratíssimos com a intenção de revendê-los quando a situação voltasse ao normal.

A desordem de Luanda leva o narrador a fazer uma alusão aos tempos em que Angola era colonizada por Portugal, quando o branco era carregado pelos negros, o narrador reflete o retrocesso vivenciado em seu sonho e termina, de forma abrupta, o conto:

Sem transporte moderno que andasse, sem sentido de tempo, amordaçada pelas dificuldades daí decorrentes e submissa à omnipresença de toscos monocicles de madeira à tracção humana nas suas ruas entupidas, a cidade deu-nos o fatídico sinal de que, em pouco tempo, sucumbiria. Não querendo ser cúmplice, preferi abandonar o trágico sonho e pôr fim, aqui e agora, a este conto. (p. 15)

As preocupações do autor com o inchaço populacional da capital angolana não finalizam. O insólito retorna e prevalece em “Luanda a duas velocidades”. Neste conto a cidade é dividida em dois turnos rigorosos por seu prefeito, que visa com essa medida reduzir os problemas de uma cidade superpovoada. Os percalços submetidos à população são narrados com ironia, obrigando famílias e os serviços públicos e privados a se dividirem em dois turnos. Trata-se de uma metáfora angustiante do caos urbano da cidade de Luanda.

As pessoas, as empresas e as instituições fizeram as suas opções e, em função disso construíram todas as suas demais relações.
Famílias inteiras optavam “por viver” de dia ou à noite e, segundo a sua escolha, estabeleciam a sua convivência, cresciam e multiplicavam-se com os demais que “vivessem” no mesmo período.
Em poucas palavras, a cidade “vivia” intensamente as vinte e quatro horas, mudando apenas de actores. Na mesma cidade havia dois grupos de cidadãos que viviam a mesma época, mas em momentos diferentes. (p.82)

O período comunista da república angolana é relembrado no conto “Um Ifa no cafriqui”. O texto relata um kota (mais velho) que consegue adquirir um caminhão, o IFA do título, popularmente conhecidos como: IFA – Independência Fodeu Angola ou IFA – Indústria Funerária de Angola (p. 49). Esse carro, que não era confiável – “o IFA era alto e capotava muito” (p. 49) – tanto pela sua mecânica quanto por seus motoristas, era importado da então Alemanha Oriental (RDA). O IFA virou objeto de desejo da sociedade da época que pretendia ter alguma forma de ganhar dinheiro extra, longe do controle do Estado. Em razão disso, o caminhão era alvo de seguidas tentativas de assalto deixando desassossegado seu dono:

Entretanto, poucos eram os IFAs para todos que queriam tê-los. Virar empresário angolano, em época de predominância da propriedade social ou estatal sobre os meios de produção, era um privilégio arriscado, mas intimamente invejado e desejado. Ter um IFA já bastava para se denominar empresário. Porque ter um camião num mercado onde o omnipresente concorrente era o Estado, bem podia dar o estatuto de pequeno empresário. (p. 49)

O didatismo retorna em “O kota Meu está em parampas”. Em intenso diálogo, um personagem demonstra ao seu chefe o por quê da maioria da população permanecer longe das boas oportunidades, restritas a um pequeno grupo que detém o controle e o acesso à informação, legando ao resto da população uma vida sofrida e sem maiores perspectivas.

Aqui nem todos sabem de tudo. A informação não circula para todos. Por isso é que, às vezes, as coisas boas acontecem num lugar, onde estão os que sabem que vão acontecer, e todos os que não sabem continuam distraídos com o que já existe, com o que já não dá mais sumo. O kota deve masê ter o canal de informação do que vai acontecer. Por isso é que se posiciona. Porque ninguém muda de posição à toa. (...) Agora, para subir é preciso saber para onde. É preciso saber como! E tudo começa com a circulação de informação! (p. 72)

O conto que encerra o livro, “Era uma vez um peixe que não sabia nadar”, trata-se de uma bela metáfora do período colonial e do pouco mais de trinta anos de Angola independente, narrando alguns momentos da história conturbada do país. O narrador apresenta todas as lutas enfrentadas pelo peixe para defender seu pedaço de mar, o que fez desenvolver e privilegiar determinadas habilidades de guerra em detrimento do seu bem-estar e da sua existência. Somente com a paz e a soberania da sua parte do oceano asseguradas, que o peixe se deu conta do que falta para sua vida:

Só nessa altura, o nosso peixe pôde dar conta de que havia, ao longo da vida, aprendido muito, havia aprendido quase tudo, mas o pouco que lhe faltava para poder dizer que sabia tudo era o passinho mais importante da sua vida. O nosso peixe havia dado conto de que afinal não sabia nadar.
Tudo quanto fez, daí em diante, foi aprender a nadar, para melhor desfrutar das bênçãos que Deus havia colocado no seu pedaço de mar, do mundo vasto dos oceanos e da época em que tinha o privilégio de viver.
E assim foi. Pode crer! (p. 99)

Roderick Nehone denuncia os males da sociedade e da política angolanas, fazendo da sua literatura o espaço para desmascarar as atrocidades cometidas contra o país, sem deixar de valorizar a autoestima do cidadão angolano, apresentado-o novas maneiras de conduta perante os caminhos tortuosos que a História revela. Os contos de Nehone são boias salvadoras em meio às tormentas que insistem em permanecer em Angola. E que não farão a nação submergir.

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