sexta-feira, 22 de maio de 2009

Lisbon Blues, de José Luiz Tavares - resenha por António Cabrita

A resenha abaixo foi gentilmente enviada pelo escritor cabo-verdiano José Luiz Tavares acerca do recente livro de poesia, "Lisbon Blues seguido de Desarmonia". Lançado no Brasil pela Editora Escrituras, o livro integra a coleção Ponte Velha.
Abraços,
Ricardo Riso


TRATADO DE URBANISMO
Algumas notas sobre «Lisbon Blues seguido de Desarmonia» de José Luiz Tavares
Por António Cabrita*
1
Escreveu Eugénio Montale, poeta que amo: «a arte é a forma de vida de quem na verdade não vive: uma compensação ou um sucedâneo. Por outro lado não justifica nenhuma deliberada turris eburnea: um poeta não tem que renunciar à vida. É a vida que se encarrega de escapar-se-lhe». E não concordo nada, porque a essa falsa dualidade (vida ou arte) se antecipa a condição do âmbito.

Pense-se num piano. Como móvel não passa de um objecto. Mas o piano dá a possibilidade de criar uma obra e o intérprete dá ao piano a possibilidade de que essa obra seja – é um enriquecimento mútuo. É uma experiência com uma dupla direcção, e o piano deixa de ser um objecto para ser um âmbito. O Picasso teve a mesma experiência quando encontrou por acaso um selim de bicicleta ao lado de um guiador tresmalhado e “viu” que aquele cruzamento inesperado desenhava a cabeça de um touro. Com isso fez uma nova escultura, mas a transformação foi mútua, esse encontro modificou o seu olhar.

No plano da criação, um âmbito é o que cria um nó de relações que nos transforma. Evidentemente que a poesia é um tabuleiro ideal para o jogo da reversibilidades que o âmbito propicia, razão pela qual, como dizia o poeta brasileira Mário Quintana — lá está o paradoxo, um poeta que não amo — a poesia não é uma fuga da realidade mas «uma fuga para a realidade».

Por isso pergunta José Luiz Tavares, ecoando Rilke: «Porém, se eu gritar pelo real,/ que vivo louvado deus me trará mais do que/ o embolorado eco que na memória ecoa?» (119) Na memória das palavras, acrescente-se, nesse redil da língua, continua Tavares, «onde se cresce/ e se morre com os pulmões ungidos pelo trovão». (119) O trovão é cego, a luz que o antecipou não, mas a irradiação do relâmpago só se torna palpável (veja-se a ironia) se a palavra lhe for trânsito na sua fuga para a realidade, onde finalmente se converte em experiência, em jogo partilhado, em âmbito. De onde ressalta que a poesia é mais um meio de conhecimento que de representação e, em segundo lugar, que não há nesta hipótese a vida de um lado e a literatura de outro. É o que trama José Luiz Tavares, e penso ser o incremento dos grandes poetas.

2
Não há escapatória ao que nos tornou únicos e irrepetíveis e conformou um destino. José Luiz Tavares: pobre, negro, cabo-verdiano, com os pais na diáspora. Cedo se vê dividido por uma dupla diáspora. O da periferia da língua materna, o crioulo, e a diáspora na língua: o português. Quer-se caldo mais vulcânico? José Luiz negou o que separa, fez do que consterna uma afirmação: «Mas faz da tua vida uma arte da recusa:/ da pátria, em que célere te amortalham, /tu que só nos versos os sinais que salvam/ vislumbraste»(154), e arrancou-se pelo transe da poesia à sua condição periférica. Quando desembarca para estudar em Lisboa, com o lume programático que é o seu, já sonha devolver à lusíada língua algum brilho, uma «intacta geometria» tonificada pela aragem e um vinco de sangue, de modo a emboscar os sortilégios. Claro que em tudo isto se padece; se calhar, como diz Le Clezio, um dia descobriremos que nunca houve literatura, que ao invés houve sempre medicina. Medicina porque o autor escreve para se salvar. Catarse.

Mas vou contar um segredo: a catarse de nada vale, o que importa é o que fazemos com ela. Como a deslocamos, transfiguramos, a dotamos de sortilégio. Só esta translação, a que muda a dor em dom, importa: «E vendo assim lisboa (so beautiful)/ assalta-me a lembrança de um outro azul/— sob suas fímbrias plantei/ renques de acácias e tabuletas alusivas; /sob seus desdoirados ramos/ desamores lamentei/que não sou amigo do rei,/ nem cheganças com deuses hei./Mas se é de sua lei/ que, embora triste, seja altivo amigo/ da grei, tal sina não maldigo;/ talvez mesmo comigo diga:/grato estou a estes claros dias/ em que das lágrimas fiz maravilhas.» (LEMBRANÇA DE MANUEL BANDEIRA…). Acrescente-se a isso o Ofício, o abnegado gesto de calcetar diariamente a palavra, fazendo com que vida e a escrita convirjam, não por vaidade ou orgulho, mas porque assim se respira, e temos “o desgoverno” deste autor cabo-verdiano, omnívoro homem do mundo e da cultura que, quanto mais se expande no magno e transcontinental perímetro da literatura, mais se aproxima da sua origem.

3
Eis a cartografia e os seus endereços, nesta Lisboa contida em José Luiz Tavares.

O verdadeiro resgate deste livro é a sua consciência crioula, mestiça, o entrelaçado dos seus veios no ladrilhado dos seus versos. Ao jeito de uma bebinca. Expliquemo-nos. Temos a camada da Lisboa empírica, a da locomoção e vivência do poeta: as noites, engates, itinerários, passeios, eléctricos, turistagens, desejos, expectativas e rasgões deceptivos no plano existencial, o recorte da vida; depois temos, noutra camada, isso confrontado com a memória da Lisboa dos poetas que o poeta lê – Cesário, Vitorino Nemésio, Armando Silva Carvalho, o inevitável Pessoa, etc.- : a tradução literária -; ao que se sobrepõe nova camada com a memória transpessoal dos lugares: do rio, omnipresente, aos monumentos, às ínfimas e bolorentas tascas, ou aos cafés, miradouros, jardins e praças, e à sua importância topológica no cruzamento de comunidades díspares.

Isto leva a que, ao arrepio da maior parte da poesia hoje dominante — que usa e abusa de um só tempo verbal, coincidente com o do poema, e se concentra num episódico quadro temporal — José Luíz Tavares (como antes dele, Jorge de Sena e João Miguel Fernandes Jorge) faça da História (literária, social, da linguagem) um harmónio e convoque a «longa duração» na tessitura dos seus poemas, sem medo de para isso por vezes recorrer à dissonante elipse como processo: «Deste-me telegráficas razões/ para o desamor./ O noturno arco-íris/ outra vez presa do teu riso — por muito menos abandonei filhos/ e mulher, e automóvel/ à saída do emprego./ Rossio à noite tem ciosos habitantes,/ pretos das africas de sorriso na algibeira,/ eu diria que gente (embora a saldo/ para qualquer leve inconveniente)/ que naves já não negreiras desembarcam/ por sob um céu que públicos contendores/ disputaram o matiz -/ eu diria que fúcsia, por vezes sépia,/ como nesse fundo de caravaggio/ em que pretos de ginga e volteio/ aguardam o vago Sebastião/apreçando a jorna em indecifrável algaravia.» (Noturno do Rossio).

Depois, o seu caudal discursivo é ainda mestiço (uma intertextualidade em devir perpétuo e em mútua influência) pela associação automática, a simultaneidade de tempos históricos, as sequências de imagens intensamente visuais ou as citações literárias implícitas; sendo em si mesma a linguagem um feixe ou uma multiplicidade de registos e modos de uso que disputam pertinências e convenções e articulam o erudito e o calão, ou, lubricamente, curto-circuitam o dizer em voga com um delicioso paté de anacronias verbais (- «sabotagem linguística» pela qual o autor lembra a fatuidade épocal de todo o dizer). Dantes, dizia-se que estes poemas se comportavam como palimpsestos, agora será mais exacto pegar num vocábulo que o autor usa várias vezes: são fractais, variantes na serialização que a literatura é, figuras auto-reflexivas e costuradas num discurso que sabe colocar todas as máscaras e dilui-las ou fundi-las com uma facilidade, uma técnica ou um fôlego invejáveis.

4
A meio caminho de vida do poeta houve o “acontecimento do soneto”. É o que dá notícia o segundo dos livros aqui compilado «Desarmonia —Sonetos Esconsos».

O soneto está para a poesia como o piano para a música: 72 teclas e uma pauta infinita de variações. No caso, 14 versos e uma girândola de fogo preso. O soneto é, intrinsecamente, um oximoro, pois propicia a maior das liberdades induzida pela maior das disciplinas. Que o diga o indiano Vikram Seth, que fez um romance de 300 páginas em sonetos, «The Golden Gate». Quando se tem a ilusão de dominar o soneto — o qual deixa sempre um rabo de fora — o poeta fica obcecado, como a língua que encontra um molar rachado que sonda, interminavelmente. E constitui um dos maiores riscos no domínio da poesia, no sentido em que a disciplina a que obriga pode secar o poeta, acantoná-lo na técnica. Ledo Ivo, um dos bons poetas brasileiros da geração de cinquenta, e que debutou com longas elegias, inflectiu no soneto ao terceiro livro e ao décimo lamentaria ter-se confinado ao seu espaldar rítmico.

Mas não se pode fugir ao desafio, e José Luiz Tavares, no seu jeito de um arqueólogo da língua, não podia decliná-lo. Não é o espaço para fazer uma análise apurada de alguns poemas no limite da “saturação literária”, queria antes chamar a atenção para os dois ciclos finais, Matéria Ígnea e À Beira das Cinzas, que por si só, justificam claramente o encómio deste livro.

Diga-se que José Luiz Tavares trabalha na corda bamba de “um realismo” que tende à «rugosa realidade» de Rimbaud e transita na tensão entre a memória da literatura e a vida ao relento: «a vida/ é o que desborda deste molde de decalque» («O Flato de Orfeu», 11º soneto).

O poeta sempre oscilou entre a elegia e a (auto-)derrisão, e é brilhante nas duas vertentes – a haver alguns deslizes nos seus poemas, decorrem de eventualmente não ter doseado bem o trabalho da sístole e da diástole e não haver conseguido a síntese das suas duas pulsões. Esta tensão é bem patente neste livro; veja-se: esta dicção: «sonho-te, meu brando país do sul, pequena/ nesga de azul, ou apenas votivo perfil de lava,/ sobre cujo gume o trânsito do tempo infindo/ é rutila transparência que a memória encena» («Partes da Bruma», 4), claramente nos antípodas desta: «piéria voz decadente e glabra/ que esta rupestre moldura guarda/ tudo é rouca música em que te vens/ pobre poesia que nem o pagode já entreténs» («O Flato de Orfeu», 7). Contudo, felizes os países que têm poetas que são vários num (e não nasceu do acaso a admiração de Tavares por Nemésio, que não precisou da histeria do heterónimo para se manifestar em arquipélago) e na maioria dos poemas esta tensão é resolvida de uma forma orgânica e fecunda — como acontece em O’Neil, um lírico a contrapêlo, e em Fernando Assis Pacheco, que Tavares também evoca.

Nos dois ciclos que citei e prefiro vejo um verso viril que pelo vinco de uma prosódia segura deixam de lado o Cesário, tão evocado no primeiro livro, para avançarem mais atrás na tradição e dialogarem com Bocage. E não é pela matéria licenciosa dalguns sonetos (o que cria sempre dissabores sociais aos poetas), mas antes pela auto-análise e algum ritmo: «nem do amor digas era uma vez: puro/ ladrão de mãos de veludo, seu assomo/ é helicoidal destino do poeta impuro/ patinado por sete gerações de fumo». Mas o poeta vai mais longe na genealogia e nos dois sonetos finais do livro – absolutamente brilhantes – farejo Sá de Miranda.

Pode um poeta ecoar todas estas vozes e ser ainda como aquelas equipas de futebol que jogam mais do que a soma dos seus elementos? É o que acontece aos grandes poetas, que tudo incorporam e devolvem com uma energia que lhes é própria e singular.

E por isso só me resta aconselhar a leitura imediata deste livro de José Luiz Tavares, que reúne seguramente, entre outras peças de valia, uma dúzia de poemas que são do melhor que a literatura em língua portuguesa tem produzido. Comece o leitor por exemplo pelo poema em que o poeta dialoga com a estátua de pessoa, no Chiado. E se o poeta escreve: «Pátria futura já sombra escalavrada», acredite que é por modéstia, pois quem se apresenta assim como um vero urbanista da língua tem nas paisagens do futuro um lugar assegurado.

*António Cabrita, escritor, crítico e jornalista português
Fonte: e-mail enviado pelo poeta José Luiz Tavares no dia 19 de maio de 2009.

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