quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Mia Couto - Venenos de Deus, remédios do Diabo (resenha)

por Ricardo Riso

O prazer e a curiosidade motivam a travessia das cento e oitenta e oito páginas do recente lançamento de Mia Couto: Venenos de Deus, remédios do Diabo (Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2008). Exímio contador de história que é, Mia Couto neste novo romance instiga o leitor com uma história recheada por personagens complexos e intrigantes, levando-nos à Vila Cacimba, distante cidade de sua Moçambique. Cidade em que nada é exatamente como deve ser nem seus moradores são e dizem o que realmente são, o que logo nos remete à inversão proposta pelo título do livro, e é nessa relação de troca de papéis que se calcará a história.

Sidónio Rosa, ou Sidonho, o protagonista do romance é um médico que resolve ir para Vila Cacimba para prestar serviços em uma organização internacional, mas com o intuito de reencontrar Deolinda, uma mulher que conheceu em Portugal, filha de Bartolomeu Sozinho e sua esposa Munda. No vilarejo depara-se com uma doença misteriosa que ataca os soldados estrangeiros, os “tresandarilhos”, em sua maioria.

Para sua surpresa, não encontra Deolinda, todavia, é informado pelos pais que ela está no estrangeiro fazendo cursos de aperfeiçoamento, porém seu retorno é ignorado. Contudo, Sidónio recebe cartas de Deolinda pelas mãos de sua mãe, Munda, deixando-o desconfiado com a chegada misteriosa das cartas:

– Quem são esses misteriosos mensageiros que trazem as cartas de Deolinda? Quem são eles que ninguém os vê?
– O senhor quer saber muito, Doutor. São familiares. O senhor sabe, aqui, em África, todos são familiares. (p. 47)

Nas cartas, Deolinda pede para que Sidónio dê assistência aos seus pais, papel que o médico presta, mas com a intenção de adquirir a confiança dos pais de sua amada. Com isso, o médico começa a conviver com os Sozinhos, outras pessoas do vilarejo e seus estranhos hábitos, esperançoso em rever sua paixão o mais breve possível. Essa relação de troca de favores remete-nos aos tempos coloniais que se perpetuam no pós-independência em razão da miséria vivenciada pela maioria da população, fazendo com que o estrangeiro procure comprar a confiança das pessoas com o seu dinheiro, enquanto os pobres aceitam o papel de vítima e assim obter o máximo proveito com a ajuda externa.

É no desenrolar da espera de Sidónio que vamos conhecendo a complexidade dos personagens a começar por Bartolomeu Sozinho, um ancião negro saudoso da época colonial. Dos anos 1960 até a independência em 1975, viveu a bordo do transatlântico Infante D. Henrique da Companhia de Navegação Colonial cumprindo a função de mecânico. Bartolomeu orgulhava-se de ser o único negro da tripulação, mas a independência do país coincidiu com a quebra e a inutilização da embarcação. Assim como o navio, Bartolomeu também se sente fora de uso e enclausura-se no quarto de sua casa, saudoso dos tempos coloniais.

Na casa, Bartolomeu vive com sua esposa Munda uma relação conflituosa, confusa e de dependência entre eles: “Já não temos outra coisa para fazer. Sabe o que penso, Doutor? A zanga é a nossa jura de amor” (p.10). Munda esconde mistérios a respeito do paradeiro da sua filha Deolinda e sobre o que aconteceu no passado entre sua filha e o pai, sugerindo uma relação incestuosa a Sidónio Rosa, fato que a leva a planejar a morte do marido e ao mesmo tempo prestar-lhe toda a assistência médica.

Um outro personagem de destaque é o antagonista de Bartolomeu, o administrador de Vila Cacimba, Alfredo Suacelência. A princípio, Bartolomeu revela-nos que o administrador é uma pessoa corrupta como todos os políticos de Moçambique, impressão reforçada pela conduta de Suacelência que se vale da influência do cargo para manipular situações e oprimir pessoas:

– Pois mandei chamá-lo – repete enfaticamente o anfitrião – para conversarmos sobre a situação da Vila. E tinha que ser aqui, no conforto da minha casa. (p. 67)
– Eu não bebo outra coisa, para mim whisky é a única coisa que existe. (p. 68)
serve-se generosamente e, mais generosamente ainda, emborca, de uma assentada, um copo inteiro. Volta a encher o copo, ao mesmo tempo que desaperta o cinto e esfrega a barriga deixada a descoberto. Um poderoso arroto mistura-se com a voz e o administrador é forçado a repetir a fala:
– Sabia que eu posso mandá-lo prender, Doutor?
– Sei.
– Fica preso e ninguém sabe de nada. Aqui em Vila Cacimba é muito longe, não há embaixadas, consulados, jornalistas... (p. 71)

A rivalidade entre Bartolomeu e Suacelência é interessante por retratar Moçambique antes e depois da independência. Bartolomeu possuía posição de destaque por trabalhar no transatlântico supracitado durante o colonialismo, fato que era desprezado pelo administrador recordando um importante momento da hipocrisia da ditadura salazarista que tentava convencer a opinião pública internacional que não havia racismo nas colônias portuguesas:

O administrador fazia pouco das suas glórias marítimas. Quando Bartolomeu desembarcava do Infante D. Henrique, as pessoas olhavam-no como um herói que vencera horizontes. Suacelência minimizava-lhe os feitos: “Ora, esses colonos precisam de um preto decorativo”. Não era por méritos próprios que o mecânico negro seguia no navio. Ele era tripulante apenas como instrumento de uma mentira: de que não havia racismo no império lusitano. (p. 26)

Todavia, Suacelência soube manipular a seu favor a sua não permanência na embarcação e a recusa em submeter-se aos portugueses, o que era bastante prestigiado na década de 1960, quando começou guerra colonial em Moçambique (1964) alçando-o aos cargos burocráticos após o país ter se tornado independente. Suacelência também era tripulante do navio, mas ao ficar gravemente doente, necessitou abandonar a embarcação para maiores cuidados na então capital Lourenço Marques, atual Maputo. A partir daí, surgiu a sua revolta com Bartolomeu:

O jovem Suacelência demorou-se na capital e, quando regressou à sua terra natal, trouxe consigo uma versão heróica da sua passagem pelo navio. Que ele tinha sido expulso do transatlântico por razões patrióticas. Ele, Suacelência, filho e neto da linhagem Susiweia, tinha capitaneado uma revolta à moda do assalto do Santa Maria, por Henrique Galvão. A revolta abortara – em parte pela conveniência de Bartolomeu para com os portugueses – e Suacelência tinha sido lançado ao mar. Salvara-se graças à ajuda de uns pescadores que o trouxeram para a praia. (p. 72)

Entretanto, a complexidade de Suacelência surge quando fala de sua relação com o partido: “– A minha vida não é muito feliz, o senhor sabe? (...) Sabe o que acontece no final? Acabo dizendo mal do meu partido” (p. 71). Depois, ficamos sabendo que Suacelência é um personagem que, de certa maneira, possui um bom caráter que esbarrou diante de interesses escusos, típicos de um país mergulhado em corrupção e em favorecimentos tanto particulares quanto a grandes corporações:

Suacelência tinha sido demitido do cargo. Sem razão, nem motivo nem explicação. A medida fora tomada enquanto o Administrador recebia tratamento na cidade. (p. 161)
O que tinha ocorrido era simples, no dizer de Suacelência. Ele se tinha oposto ao descontrolado abate de madeira, sem saber que o negócio era desenvolvido por uma empresa de um político poderoso. (p.171)

Esta personagem ainda nos surpreenderá com a generosidade ao gastar suas economias para realizar o último desejo de seu rival: que o seu enterro tivesse um barco para levar seu corpo até o cemitério – “Era um pedido louco, mas Suacelência iria cumprir. Caso ainda sobrasse dinheiro, talvez comprasse umas tintas e pintasse no casco do barco o nome Infante D. Henrique”. (p. 177)

Explorando a pluralidade étnica de Moçambique como na relação do casal Bartolomeu-Munda, ela mestiça e descendente de alemães, enquanto ele negro que contrariou a família ao escolhê-la para casar, gerando Deolinda que se apaixonou por um homem branco português, Sidónio, Mia procura demonstrar como a questão racial ainda é pertinente no país, geradora de conflitos e preconceitos ainda enraizados.

Em Venenos de Deus, remédios do Diabo, Mia Couto mantém-se fiel a sua consagrada fórmula de contrapor tradição e modernidade neste Moçambique do século XXI, em que não há curandeiros, pois Deolinda vai procurar um em outro país, no Zimbábue, a presença marcante de um médico, Sidónio (que não possui habilitação para tal), assim como a figura de Bartolomeu, presa ao passado colonial. Ainda deparamo-nos com problemas contemporâneos como casos de corrupção política, AIDS, incesto e aborto em um país que procura a melhor maneira de construir o seu caminho, e tem em Mia Couto um observador arguto a respeito do descompromisso político e à perniciosa ocidentalização das culturas locais.

Aproveitando-se do nevoeiro já proposto no nome do lugarejo, Vila Cacimba, Mia Couto utiliza com mestria a sua verve de ótimo contador de história para manter enevoada as vidas de seus personagens e o leitor é conduzido por imagens imprecisas, recheadas de verdades e mentiras que se confundem e se revelam no decorrer das páginas. E, assim, a partir da casa de Bartolomeu, tão doente quanto ele, metonímia de Moçambique, procurar denunciar e sanar seus males e apresentar um caminho menos conturbado para a nação. Tudo em excelente literatura.