domingo, 12 de outubro de 2008

Nuvem Cigana: poesia e delírio no Rio dos anos 70


Confesso que desde o ano passado cultivei a dor de barriga característica pré-carreira em todos os momentos que lembrava do livro Nuvem Cigana - poesia e delírio no Rio dos anos 70, editado pela carioca Azougue, organizado por Sergio Cohn, enriquecido com mais de uma centena de fotos, e era minha obrigação em comprá-lo.

A Nuvem Cigana foi um coletivo de artistas que modificou as relações entre artistas, público, produção, meios de comunicação e tudo o mais que envolvesse as artes, assim como o comportamento geral no crepúsculo permanente dos anos 1970. Com sua origem na atitude inovadora de dois jovens poetas, Chacal e Charles, que criaram seus próprios livros de poesia mimeografados e foram distribuí-los diretamente ao público que eles julgavam interessados.

A partir daí, os contatos foram crescendo novas pessoas queriam mostrar seus trabalhos, mas não conseguiam devido à forte repressão da ditadura militar, com seu pior representante, Garrastazu Médici. Logo, esses jovens, agora agrupados (Bernardo Vilhena, Cafi, Ronaldo Santos, Ronaldo Bastos, Guilherme Mandaro e outros), partiram para a união, em trabalhos e experiências coletivos, em meio a viagens de maconha, cocaína, muita birita e ácidos, pé na estrada, rock’n’roll e poesia decidiram mostrar seus poemas em apresentações públicas, agregando artes plásticas, teatro, rock e carnaval.

Em um percurso meteórico, que vai do primeiro livro de Chacal, “Muito prazer, Ricardo” em 1972, ao surgimento da Nuvem Cigana em 1975 e aos anos que se passaram, várias histórias são contadas em forma de diálogo pelos diversos integrantes do grupo, que relembram os primeiros contatos, as viagens, prisões, as experiências bem sucedidas ou não, a revitalização do carnaval realizada pelo bloco Charme da Simpatia, a valorização de Oswald de Andrade, a casa de Santa, as famosas artimanhas que moldaram as apresentações da Nuvem etc.

A leitura é prazerosa, por vezes triste, em muitos momentos hilária, bela pela disposição das pessoas em colaborar em prol do grupo... cativa, emociona, faz sonhar...

Entretanto, o caráter coletivo que alimentou a Nuvem Cigana e seus integrantes não resistiu às imposições e frieza do capitalismo, ou seja, tinham que se enquadrar ao sistema. O passar dos anos para os jovens, que já não eram tão jovens assim, foi cruel, e novas responsabilidades como filhos, exigiam outras posturas. Assim como planos, idéias e aspirações próprias foram fragmentando a Nuvem, causando a dispersão natural de seus integrantes.

Todavia, a coragem, o escracho, a criatividade das pessoas que se envolveram na Nuvem Cigana alterou o comportamento cultural brasileiro, desdobrando-se no que melhor se produziu nos anos 1980. Suas inovações desmembraram-se no teatro, nas artes plásticas, na imprensa, no carnaval de rua, na televisão, na música e na literatura. O estilo Nuvem Cigana ainda encontrou fôlego para atingir as décadas de 1990 e 2000. Vale recordar as outras experiências coletivas de contracultura dos Novos Baianos e do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone, mostrando a vontade e o espírito do período. E creio que essas influências durarão por muitos e muitos anos... pelo menos enquanto houver criatividade, vontade de agir e solidariedade entre nós.

Trata-se de um excelente livro para compreendermos uma época de trevas profundas, encarada por uma juventude inteligente, criativa, alegre, delirante... principalmente, solidária.

Ricardo Riso


Cohn, Sergio (org.). Nuvem Cigana - poesia & delírio no Rio dos anos 70. Rio de Janeiro: Azougue, 2007.

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