quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Copa de 78: a capacidade de um povo de viver uma irrealidade e não perceber


Acabo de assistir ao magistral programa Observatório da Imprensa (TV Brasil), comandado pelo jornalista Alberto Dines, um dos homens que representa a própria história do nosso jornalismo e um ardoroso defensor da democracia e da liberdade de imprensa. O programa de hoje foi realizado na Argentina e vasculha uma controversa passagem da história recente do país, que foi a Copa do Mundo de Futebol de 1978, sob o sangrento regime ditatorial do Gal. Videla.

Naquela Copa, a Argentina para chegar à final precisaria ganhar do Peru por uma diferença de quatro gols. Assim, eliminaria o Brasil. Como o selecionado peruano era considerado um bom time, havia um consenso de que a tarefa portenha seria difícil de ser concretizada. Todavia, para a surpresa de todos, quando começou a partida os gols argentinos foram se sucedendo com tamanha facilidade que ao apito final o placar marcava 6 x 0 para os donos da casa. Logo, a Argentina faria a final com a Holanda e o Brasil disputaria o terceiro lugar.

Imediatamente a delegação brasileira e nossos jornalistas fizeram sérias acusações a respeito do resultado do jogo, alegando suborno e outros mais. Como não houve apelo maior entre a imprensa mundial, as reclamações não foram investigadas, o Brasil ficou com o título de “campeão moral”, de acordo com o nosso técnico à época, o saudoso Cláudio Coutinho, a Argentina ganhou seu primeiro mundial e a ditadura militar garantiu uma sobrevida. Com o apoio da FIFA.

Feito um breve resumo do que aconteceu no fatídico campeonato, vamos ao programa.

Dines, perspicaz e com a excelência costumeira, investiga o papel da imprensa argentina durante a Copa. Entrevista jornalistas daqui como Luís Mendes e Juca Kfouri; jornalistas de lá que cobriram o Mundial, como Ricardo Gotta, autor do bombástico livro recém publicado “Fuimos Campeones”; e jornalistas da nova geração que revisitam o passado e tentam desvendar o que aconteceu durante os vinte e cinco dias de disputa e, principalmente, na partida contra o Peru. Trinta anos depois, o fantasma daquele jogo está mais vivo do que nunca e novos depoimentos surpreendentes, demonstram a armação que foi a referida partida, como o jogador argentino que revela, além do já declarado suborno em outras ocasiões, mas o fato do time portenho ter jogado dopado.

Todavia, o que mais me chocou foi notar o clima de euforia causado no país. Nada diferente do que aconteceu aqui, na Copa de 70. Estávamos sob as garras de Médici, o mais cruel dos nossos ditadores, porém a Copa era no México. OK, mas o que me deixou estarrecido foi ver as imagens de televisão com a vibração da população nos estádios, enquanto o pau quebrava nos porões, e as manifestações contra os desaparecidos aconteciam e eram sufocadas etc. Impressiona-me o poder de manipulação do futebol e o seu uso político, algo que é sempre denunciado, nenhuma novidade. Contudo, ainda fico espantado.

Durante a Copa, a perversidade e a euforia estavam praticamente lado a lado. Não sabia que a dez quadras do estádio da final do Mundial, palco do time do River Plate, o grandioso Monumental Del Nuñez, localizava-se a Escuela de Mecanica de la Armada, o principal centro de tortura do país, local de milhares de mortes, também de onde saíam os presos políticos em aviões e, em seguida, jogados no mar.

Fico estarrecido com todas essas histórias ocorridas contra o homem, contra a supressão dos direitos individuais, contra a vida. A frase utilizada no título deste texto, “a capacidade de um povo de viver uma irrealidade e não perceber”, foi dita por um jovem documentarista, Christian Remoli, autor de “Mundial 78 – verdad o mentira”. E não há como não constatar que ele foi muito feliz ao se expressar. Basta ver o que aconteceu e acontece por aqui.

Para Alberto Dines, ao encerrar o programa, aquela partida contra o Peru e aquele Mundial de 78 ainda não terminaram. Uma partida de futebol encerra-se com o apito final, porém, diante de tantas suspeitas e dúvidas, é dever da Imprensa investigar o passado e trazer à tona as respostas ainda não esclarecidas de um triste, e por que não? (paradoxos latino-americanos), feliz momento da história contemporânea da Argentina.

Eu também aguardo o apito final daquela Copa do Mundo.
Ricardo Riso
Tinha quatro anos de idade durante a Copa de 78, que à época não sabia do que se tratava e muito menos que vivíamos sob uma ditadura, e ficou estático quando ouviu pela primeira vez, poucos anos depois, a armação do jogo Argentina x Peru e tudo o que o cercou. Naquele momento, descobriu que os fantasmas eram reais e vestiam fardas.

http://www.tvebrasil.com.br/observatorio/
Este foi o primeiro de uma série de três programas realizados no país vizinho. Terças, às 22h30, na TVE Brasil/Rio de Janeiro.

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