quinta-feira, 17 de abril de 2008

Mia Couto: A resistência da ancestralidade espiritual em O adeus da sombra

A resistência da ancestralidade espiritual em O adeus da sombra, de Mia Couto

Ricardo Riso

A preservação da cultura autóctone moçambicana é uma constante na produção do escritor Mia Couto. Em O adeus da sombra, um dos contos de Estórias abensonhadas, o autor não faz diferente e mais uma vez nos apresenta sua genialidade no choque entre o regional e o universal, em travar o embate do cotidiano contemporâneo global que tanto afasta os moçambicanos de suas tradições seculares, e estes resistindo às inovações dos novos tempos.

A partir da doença que parece ser fulminante a vitimar sua vizinha, causada pelo desaparecimento de seu amado companheiro, o narrador conduz-nos a uma instigante reflexão entre a medicina do homem ocidental inserida em Moçambique pelo colonizador português, e o conhecimento tradicional do povo moçambicano que recorre aos homens mais velhos, sabedores dos poderes das plantas curadoras. Além de demonstrar como a questão da Saúde é tratada no país.

O conto passa-se durante o período da guerra civil moçambicana entre a FRELIMO (grupo político que permaneceu no poder no pós-independência) e a RENAMO (grupo armado apoiado pela Rodésia e África do Sul); e como não poderia deixar de ser, a guerra atua como pano de fundo para o conflito das tradições moçambicanas e o conturbado mundo moderno.

Uma menina adoece com a ausência inesperada e inexplicável do amado que pode ter sido morto em um ataque qualquer. Rotineiro, infelizmente. A mãe desesperada após ministrar “essências, queimando incensos, rezando bênçãos”[1] e com a sentença dada por um médico que decretou a proximidade da morte, procura o vizinho para ajudá-la, pois sabe que este adentrará as matas e entrega-lhe um exemplar de uma planta “capaz de descrucificar Jesus”[2]. Aqui encontramos o sincretismo religioso e o primeiro sinal de resistência da cultura moçambicana, apesar de assimilada pela religião católica trazida pelos portugueses ainda recorre às antigas tradições de cura das plantas medicinais.

O vizinho-narrador, que posteriormente apresenta-se como um biólogo (profissão de formação do autor), compromete-se em trazer a milagrosa planta e parte para a mata acompanhado de um guia, Julinho Casa’beto, recém ex-presidiário, que está sedento por conversa e não respeita o caráter sagrado da palavra: “A palavra é divinamente exata, e o homem deve ser exato como ela. Falar pouco é sinal de boa educação e nobreza.”[3] O motivo de sua prisão foi o assassinato de um homem, porém não foi um assassinato qualquer, matou para pegar a “moya” a pedido da mulher que amava. Ele justifica a moya como: “o respirar da vida”[4]; e o narrador espanta-se: “Aquele moço não era, afinal, o comum assassino. Ele matara não um ser mas a sua sombra, esse barco que nos faz navegar por pessoas e tempos”[5]. Segundo Nei Lopes, Mooyo (a energia vital), e não moya, diz: “todos os seres do Universo têm sua própria força vital, e esta é o valor supremo da existência. Possuir a maior força vital é a única forma de felicidade e bem-estar.”[6]. Quando o corpo acomete-se de doenças, ou há morte, “é conseqüência de uma diminuição da força vital, causada por um agente externo dotado de uma força vital superior. O remédio contra a morte e os sofrimentos é, portanto, reforçar a energia vital, para resistir às forças nocivas externas.”[7] E a respeito da sombra, Lopes comenta que: “Entre os elementos que compõem o ser humano, há o corpo físico, que desaparece após a morte e é uma exteriorização de sua riqueza interior e o receptáculo de suas sensações. Esse corpo vive acompanhado de uma sombra, que é a sua irradiação para o exterior e que também se desvanece com a morte”[8].

O narrador explica o motivo de sua ida à mata, a “agnóstica paisagem”: conhecer as plantas medicinais. Contudo, a pesquisa será cancelada por falta de investimento dos órgãos competentes. “Os dinheiros foram retirados, a coisa foi tida sem importância. Prioridades são outras (...)”[9] Ele critica abertamente o descaso com que a Aids (Sida) é tratada no seu país e no continente africano: “Proliferam as ciências desumanas e os cientistas ocultos. Que posso eu contrafazer?”[10], que afastam-se gradativamente da essência do homem, do descaso para com o próximo. A desterritorialização do narrador é sentida por seu guia ao questionar: “que anda fazer, abichando-se por estas selvas? (...) Mas o senhor sai do jardim para entrar no capim? É que cada um no seu buraco.”[11] Para enfatizar sua declaração, a ironia, largamente utilizada pelo autor, surge na inversão de provérbios: “Me diga, peço a desculpa: jibóia usa chinelos?”[12]

Podemos até pensar que há uma conspiração para que a situação desoladora da África fique como está ou até piore, pois, ao se manter o vírus da doença incurável, a indústria farmacêutica permanece com a produção e venda dos seus medicamentos, e encontra justificativa para a continuidade dos vultosos orçamentos para as pesquisas. Porém, descompromissada com a urgência em salvar vidas porque a descoberta da cura quebrará a perniciosa cadeia vigente.

A dupla chega ao lugar onde encontrariam uma curandeira, em um muti[13], tradicional aglomerado de casas de um mesmo grupo familiar, nas zonas rurais de Moçambique. O muti poderia ser o local que, segundo Bauman, “a reconstrução cultural tem limites que nenhum esforço poderia transcender. Certas pessoas nunca serão convertidas em alguma coisa mais do que são. Estão, por assim dizer, fora do alcance do reparo. Não se pode livrá-las de seus defeitos: só se pode deixá-las livres delas próprias, acabadas, com suas inatas e eternas esquisitices e seus males.”[14] E no muti outras tradições permanecem, como: “Ficamos sentados na entrada do muti, conforme os pedidos de licença. Em boa casa africana o dia transcorre fora da casa, no pátio. Por ali rondam as crianças, ciscam as galinhas.”[15] Até que chega a curandeira Nãozinha de Jesus[16]. A onomástica, outra característica da obra coutiana, apresenta-se. Na referida personagem, trata-se de um sinal de resistência à cultura invasora, à religião do colonizador apesar da assimilação do nome, que mesmo assim a nega. Contrária ao catolicismo imposto, procura perpetuar a tradição do conhecimento passado através da oralidade. Nãozinha de Jesus conhece a magia das plantas e “a magia é manipulação das forças e pode se revelar útil ou nociva, de acordo com o uso que dela se faz. (...) A boa magia, (...) visa a purificação dos seres, para recolocar as forças em ordem e evitar a morte”[17].

Nãozinha, com generosidade, inicia o narrador, e este com a humildade devida, no aprendizado das plantas medicinais. Assim é a passagem de conhecimento entre os povos africanos, cultura em que os mais velhos escoram-se em suas experiências de vida e a proximidade com os antepassados marcam a fundamental importância na sociedade, à qual Nãozinha é a curandeira de seu muti, sabedora das plantas curadoras que vêm do chão, cujo o avançar da idade está mais próxima dos antepassados que estão no chão. E a energia vital está no chão.

Sendo assim, o narrador revela a ela o motivo da aparição: que seria a última visita e mostra a planta pedida pela mãe da menina que está no leito de morte. Nãozinha não aceita a despedida: “Lhe prometera combatermos juntos, ambos querendo salvar os seus vitais materiais, guardar em mundo suas antigas sabedorias.”[18] Dessa maneira quebra-se o elo entre o arcaico e o moderno, a cura pelas plantas medicinais e a medicina “científica”. Na cultura tradicional o conhecimento é passado pela tradição oral, Nãozinha passava os seus conhecimentos para o narrador, e o conhecimento das plantas curadoras não poderia encerrar-se com ela, alguém tinha que continuar a tradição, mesmo que fosse um de fora, um que tenha estudado a medicina do homem branco como o narrador, conforme diz Lopes: “A transmissão oral do conhecimento é o veículo do poder e da força das palavras, que permanecem sem efeito em um texto escrito, (...) o Verbo Atuante, tem o valor de uma iniciação, que não está no nível da compreensão, porém na dinâmica do comportamento. Essa iniciação é baseada em reflexos que operam no raciocínio e que são induzidos por impulsos nascidos no fundamento cultural da sociedade.”[19]

Dessa maneira, será uma tradição que se perderá diante da avançada idade da curandeira e, que, talvez, com a obrigatória desistência do narrador, ninguém na aldeia queira se iniciar nas plantas medicinais. Assim, atua a cultura daqueles que estão no poder, através da assimilação desencorajando as novas gerações a conhecer a cultura dos antepassados, ou seja, tornar a diferença semelhante. Como diz Bauman: “em vez de se manter intacta a maneira como as coisas existiam, tornou-se mudar a maneira como as coisas ontem costumavam ser, criar uma nova ordem que desafiasse a presente (...) De fato, pode-se definir a modernidade como a época, ou estilo de vida, em que a colocação em ordem depende do desmantelamento da ordem ‘tradicional’, herdada e recebida; em que ser significa um novo começo permanente.”[20] O narrador ainda tenta uma última tentativa de aprender mais: “se andarmos juntos, nas devidas pressas”[21]; mas não é atendido pela curandeira: “Eu já não tenho após, meu filho. Para que as pressas?”[22] O processo de iniciação não pode ser acelerado, pois na cultura africana o aprendizado deve ser vivenciado, sentido, compartilhado às tarefas do cotidiano, o que leva a um acúmulo de conhecimento contínuo e constante. Porém, o desânimo de Nãozinha é evidente porque perde o seu discípulo e as plantas cada vez mais raras diante da depredação, ganância e descontrole dos que ‘vem de fora’: “Agora já não dá mais tempo. É que nos levam tudo, esses que vem da cidade cortam tudo, nem raízes nos deixam...”[23], e que provavelmente estão a serviço das indústrias farmacêuticas, entretanto, ignoram o conhecimento dos curandeiros locais, pois tratam-se de competidores, e por se incluírem nesta posição devem ser desacreditados e, se possível, aniquilados, por que na ordem vigente são estranhos que não aceitam as mudanças impostas. Diante dessa postura, a planta pedida já quase não se encontra: “Essas folhas, já há muito tempo que foram, voaram, borboletaram-se por aí.”[24] E realmente não é encontrada: “Até ali os vendedeiros haviam chegado. Até dali eles haviam arrancando, levado em carradas para a cidade”[25]. Por conseguinte, o narrador não poderá cumprir o prometido à mãe.

Ao chegar na casa da menina doente sem a planta, a mãe percebe o insucesso da missão e conduz o narrador ao quarto da menina, com seus momentos de vivente próximos do fim: “fitava o que não há, paisagens de nenhures.”[26]

Entretanto, a menina visualiza a chegada de Julinho Casa’beto, o assassino, que apunhala com uma faca o coração do narrador, “em golpe de raiz”. Repete o que o levou ao cárcere. A menina abraça Julinho “e se debruçam, ambos, para recolher a minha sombra”[27]. A sombra é integrante da energia vital: “Entre os elementos que compõem o ser humano, há o corpo físico que desaparece após a morte e é uma exteriorização de sua riqueza interior e o receptáculo de suas sensações. Esse corpo vive acompanhado de uma sombra, que é a sua irradiação para o exterior e que também se desvanece com a morte”[28].

A respeito do assassinato do narrador algumas considerações podem ser tecidas. Julinho Casa’beto havia matado um homem para salvar a mulher que estava à beira da morte, como a vizinha do narrador; o fato da mãe da menina saber que o narrador iria para a mata atrás das plantas de cura e o ex-presidiário servir como guia faz-nos pensar em um possível crime premeditado contra o narrador; a repentina felicidade da menina quando percebe a sua chegada e a sua intenção, será a menina conhecedora das tradições?; o “golpe de raiz” remete-nos ao duelo travado por Julinho e Nãozinha de Jesus, vencido por esta, que acertou o tronco de uma árvore sagrada com sua faca, pois este símbolo pode ter servido como indicação do que viria acontecer diante do insucesso da missão do narrador. Podemos interpretar o narrador como a planta curadora (a moya) a ser utilizada para fortalecer a energia da vizinha doente, pois ele é um aprendiz dos sagrados conhecimentos das plantas medicinais, assim o ato de Nãozinha serviu, indiretamente (ou não?), como uma maneira de Julinho compreender o que deveria ser feito para salvar a menina. Ou seria simplesmente uma tentativa dos moradores locais por não concordarem que um “de fora”, um estranho, conhecesse as tradições locais, mesmo sendo um moçambicano, todavia infectado pela cultura do colonizador branco, pois este estranho “significa o desmantelamento da ordem existente e sua substituição por um novo modelo de pureza”[29]. As plantas podem ser consideradas patrimônio daquela cultura, a pureza daquela cultura, e eles não podem permitir que até isso caia no poder da classe dominante.

Esse problema de resistência local com o outro, o que vem “de fora”, das grandes cidades, é retomado sistematicamente na obra de Mia Couto, foi assim n’A varanda do frangipani, em que o investigador Izidine Naíta precisou do auxílio da enfermeira Marta Gimo para compreender a cultura daquele afastado povo, que se recusavam a lhe ajudar a elucidar um assassinato; também em O último voo do flamingo, o investigador Massimo Rissi necessita de um tradutor nascido em Tizingara para entender os costumes locais e, a partir daí, tentar desvendar os mistérios que se apresentam entre os viventes locais. Com isso, o autor procura mostrar a dificuldade dos que não conhecem as tradições moçambicanas em compreendê-las.

Assim, Mia Couto nos apresenta o abismo que há entre as tradições moçambicanas e o mundo globalizado que não respeita a cultura africana. Mundo que vagarosamente afasta os moçambicanos de suas origens e conhecimentos passados pela tradição oral, prejudicada por governantes entreguistas e corrompidos. A literatura de Mia Couto atua como resistência, como defensora da ancestralidade espiritual de um povo, que desmascara a destruição criativa[30] do poder globalizante, que pretende demolir e construir ao mesmo tempo, num estado de extinção contida[31] que deixa as novas gerações confusas num permanente estado de incerteza. Por isso, sua literatura compromete-se com a denúncia e a afirmação das manifestações de moçambicanidades, diante do agressivo avançar da ordem globalizante neoliberal. É uma literatura atenta aos dilemas da contemporaneidade, que oprime as diferenças, subjuga o excluído e aniquila o fraco. O fazer literário em Mia Couto é o espaço em que cada homem é uma raça, a religiosidade surge sem religião, local de sonho e lirismo aliados na incansável espera da chuva abensonhada que trará um novo tempo com uma sociedade igualitária, em favor da paz, em favor da vida.
NOTAS:
[1] Couto, Mia. O adeus da sombra. In: Estórias abensonhadas. Editora Nova Fronteira. p. 125.
[2] Idem. Ibidem. p. 126.
[3] Lopes, Nei. Kitábu. Senac Rio Editora. p. 31.
[4] Couto, Mia. O adeus da sombra. In: Estórias abensonhadas. Editora Nova Fronteira. p. 128.
[5] Idem. Ibidem. p. 128.
[6] Lopes, Nei. Kitábu. Senac Rio Editora. p. 28.
[7] Idem. Ibidem. p. 28.
[8] Idem. Ibidem. p. 26.
[9] Couto, Mia. O adeus da sombra. In: Estórias abensonhadas. Editora Nova Fronteira. p. 127.
[10] Idem. Ibidem. p. 127.
[11] Idem. Ibidem. p. 127.
[12] Idem. Ibidem. p. 127.
[13] Idem. Ibidem. p. 128.
[14] Bauman, Zigmuth. A criação e anulação dos estranhos. In: O mal-estar da pós-modernidade. p. 29.
[15] Couto, Mia. O adeus da sombra. In: Estórias abensonhadas. Editora Nova Fronteira. p. 128.
[16] O nome Nãozinha repete-se no romance A varanda do frangipani, de Mia Couto. Neste, a personagem é uma feiticeira.
[17] Lopes, Nei. Kitábu. Senac Rio Editora. p. 30.
[18] Couto, Mia. O adeus da sombra. In: Estórias abensonhadas. Editora Nova Fronteira. p. 129.
[19] Lopes, Nei. Kitábu. Senac Rio Editora. p. 31.
[20] Bauman, Zigmuth. O sonho da pureza. In: O mal-estar da pós-modernidade. p. 19-20.
[21] Couto, Mia. O adeus da sombra. In: Estórias abensonhadas. Editora Nova Fronteira. p. 129.
[22] Ibid. Ibidem. p. 129.
[23] Couto, Mia. O adeus da sombra. In: Estórias abensonhadas. Editora Nova Fronteira. p. 129.
[24] Idem. Ibidem. p. 129.
[25] Idem. Ibidem. p. 129.
[26] Idem. Ibidem. p. 130.
[27] Idem. Ibidem. p. 130.
[28] Lopes, Nei. Kitábu. Senac Rio Editora. p. 26.
[29] Bauman, Zigmuth. O sonho da pureza. In: O mal-estar da pós-modernidade. p. 20.
[30] Bauman, Zigmuth. A criação e anulação dos estranhos. In: O mal-estar da pós-modernidade. p. 29.
[31] Ibid. Ibidem. p. 30.

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