terça-feira, 6 de novembro de 2007

Nelson Saúte – Os Narradores da Sobrevivência

Após a independência moçambicana em 1975, houve um curto período de euforia com a libertação, mas desestabilizado com a guerra civil entre Frelimo, partido que fez a revolução, e Renamo, apoiado pela África do Sul, Rodésia e tendo a colaboração não-declarada do governo norte-americano. Conflito que mergulhou o país numa crise sem precedentes em sua história, prolongando o sofrimento causado pelos séculos de ação colonizadora portuguesa.

A crueldade da situação vivenciada pelos moçambicanos deixou marcas profundas naqueles que participaram desses terríveis anos, que viram a violência aumentando cada vez mais, as mortes tornando-se rotineiras, os habitantes do interior refugiando-se na capital (os deslocados) e os mutilados pelas famigeradas minas tropeçando pelas ruas da capital Maputo. E o que é pior, a desilusão com as promessas não cumpridas pela revolução, que não concretizou os projetos de maior igualdade social, distribuição de renda, fim da fome e diversos outros problemas estruturais, que custaram tantas vidas durante a guerra colonial nos anos de 1964 a 1975.

É no clima de desencanto com os caminhos trilhados pelo país que, nos anos 1980, emerge a literatura de Nelson Saúte. Contemporâneo da revista Charrua, publicação que apresentou novos paradigmas ao corpo literário moçambicano e lançou nomes como o de Eduardo White entre outros, que Saúte se aproxima da literatura. Através de suas atividades no jornalismo, Saúte desempenha um importante papel ao documentar os nomes que formaram e ainda formam a literatura de Moçambique. Entrevista grandes escritores, organiza antologias de poesia e contos, e, em seguida, publica suas experiências nas letras.

Nascido nos subúrbios da então Lourenço Marques, atual Maputo, em 1967, Nelson Saúte tem a língua portuguesa como o principal e único idioma. Não fala nenhuma língua de etnia local, nem o ronga, língua predominante na região onde foi criado. Portanto, é testemunha viva da história recente do país: participou como “pioneiro” nos anos de euforia com o pós-independência, vivenciou o longo período de guerra civil passado durante a adolescência e juventude, que só encerraria com o acordo de paz de 1992.

Tive a oportunidade de assistir a uma palestra de Nelson Saúte no ano passado. Naquela época, a editora Língua Geral lançava uma série de livros infantis, intitulada Mama África, e Saúte assinava um dos livrinhos - O homem que não podia olhar para atrás - com ilustrações de Roberto Chichorro. Impressionou-me, durante a sua fala, a melancolia e amargura ao comentar sobre o seu passado durante a guerra, o que só viria a compreender melhor com a leitura do romance que comentarei a seguir, Os Narradores da sobrevivência (Publicações Dom Quixote, 2000).

O romance se passa nos difíceis anos da década de 1980, época de sofrimento extremo para Moçambique, um país arrasado pela violência, e pela desesperança e desencanto de seu povo com o irreal cotidiano. Como afirma o narrador: “Anos de uma grande ilusão destruída diante dos nossos olhos por mãos humanas como a nossa”. (SAÚTE, 2000, p. 141)

É a história do desencontro de Marimbique, jovem moçambicano recrutado para lutar pelos ideais da revolução, e sua mãe, a velha Xinguavilana, e o posterior reencontro no enterro de ambos. Metáfora do dilaceramento da sociedade moçambicana, que via as famílias tendo seus destinos separados e/ou encerrados pelas ações deploráveis da guerra.

Depois de vários anos afastado de sua cidade natal, Maputo, Marimbique retorna em um caminhão trazendo trinta e tantos corpos mortos, os quais ele é o responsável:

“O camião que Marimbique escoltava trazia a notícia mais dilacerante da guerra. Três dezenas de cadáveres: pernas, braços, intestinos, ventres, olhos, orelhas, pedaços de carne, corpos macerados. Pela primeira vez a guerra chegava à capital – marchava vagarosa com o camião que entra na cidade ao entardecer”. (Ibide, Ibidem, p. 15)

Trata-se do primeiro momento que a capital, ou a “Nação” como é chamada pelos moçambicanos, com o que a guerra tem de mais cruel: os seus mortos. Até então, a guerra para os moradores de Maputo resumia-se a racionamentos: “Que era a guerra na grande cidade? A falta de energia, a ausência de água”. (Ibide, Ibidem, p. 15) É a partir do reencontro de Marimbique e da presença dos mortos na cidade que o romance trilhará seu caminho.

Diante de tantas desgraças vivenciadas por Marimbique, ele recorre constantemente à memória para buscar um pouco de sossego às vistas cansadas de dor, medo e morte. O jovem está acompanhado pelo motorista, contudo os dois não se comunicam, conheceram-se para cumprir a triste missão. O filósofo Walter Benjamin apontava para a dificuldade em narrar que os novos tempos apresentavam, a violência exacerbada da guerra seria uma das motivadoras desse quadro, pois os soldados quando retornavam das batalhas nas trincheiras permaneciam mudos, incapazes de se comunicar após o convívio desesperador com os mortos e mutilados. Daí o amparo na memória, nas lembranças da infância para suportar as durezas trazidas pelo ódio e matança desenfreada entre os moçambicanos:

“Quando atravessou o Alto-Maé acenou à Estrada da Circunvalação, deste modo ele saudava a infância. Lembrou os canaviais e os carros alegóricos que atravessavam a Avenida de Angola. Estes partiam do Largo Albasine, desciam os foliões em direcção ao Bairro do Aeroporto. Todo aquele mundo labiríntico dos subúrbios acordava lembranças muito nítidas. As coisas que poderiam ter acontecido na véspera por certo deslembrava. Tal é o prodígio da memória, que nos faz recuar a tempos imemoriais e é incapaz de nos revelar uma imagem do dia anterior. No caso, ele tinha razões mais do que razoáveis para se refugiar no tempo – ou templo? – perdido. A infância, a adolescência.” (Ibide, Ibidem, pp. 38-39)

A devastação causada pela guerra às mentes das pessoas, mantém assombrados os pensamentos, a condição miserável do presente faz com que o narrador vasculhe a memória para acalantar a existência:

“As lembranças constantes de lugares ou situações que nos tenham sido queridos denunciam que o presente pouco acrescenta às nossas vidas. Abraçamo-nos ao passado, marcados por uma vontade dilacerante de o reviver constantemente ou, de forma intermitente, momentos inolvidáveis, que já não nos pertencem, a não ser no domínio inatingível da imaginação.” (Ibide, Ibidem, p.21)

A partir daí, a narrativa procura remontar o passado de Marimbique em situações vivenciadas pelas pessoas com quem convivia ou em suas próprias lembranças, entrecruzando-as com a mãe e a sua luta persistente, inglória para todos, em rever o filho desaparecido, o que a faz ser agressiva com os que querem convencê-la da morte do rapaz:

“Morto deixa corpo. Quem disse que um morto desaparece assim mesmo? (...) Nesta vida eu já me cruzei várias vezes com a morte. Todas as vezes ela deixou rasto, não é agora assim. Como se comprova que meu filho morreu?” (Ibide, Ibidem, pp. 19-20)

A morte passa a ser uma rotina no cotidiano dos moçambicanos, que são alvejados em cruéis emboscadas nas estradas, nas minas espalhadas pelo país e nos combates entre os soldados. Torna-se um terrível hábito ter que enterrar os entes queridos, o absurdo da situação chega a atingir o nível extremo de se enterrar apenas os pertences de um morto, pois muitos foram deslocados dos seus locais de origem e seus corpos jamais seriam revistos. Tal proposta é feita à mãe de Marimbique, que denuncia o desrespeito com os que se foram e a insensibilidade daqueles que se acostumaram com a desgraça e vivem dela: “Querem é vender as roupas do meu filho no dumba-nengue (mercado de rua) e mafiar-me que estão enterradas”. (Ibide, Ibidem, p. 26) Por outro lado, revela o estado de penúria a que se encontravam os moçambicanos, em miséria absoluta:

“Há anos que entretanto não se realizavam aquelas cerimônias de enterrar os pertences dos mortos. Roupa dos falecidos serve para os vivos. Numa altura destas, prenhe de crises, como desperdiçar os farrapos dos outros, mesmo depois de passarem para o outro lado da fronteira, lá onde habitam os sem-vida?” (Ibide, Ibidem, p. 26)

Este acontecimento demonstra o dilaceramento das tradições espirituais, a descrença nos rituais funerários dos antepassados, a cultura esgarçada. Nei Lopes, em Kitábu, comenta que a morte é a continuidade da vida, que se desprende do corpo físico e parte ao encontro dos que o precederam, em um outro nível de existência. Por isso, é fundamental o respeito aos antepassados e o cumprimento dos rituais e obrigações para com eles.

Tais costumes tentam sobreviver nos bairros periféricos de Maputo, os bairros de caniço, onde se passa a história. Bairros que tinham como característica o convívio entre as diversas raças (negros, árabes, portugueses, indianos) que viviam em Moçambique e formaram a cultura miscigenada do país.

A narrativa privilegia as manifestações da religiosidade africana deformada pelos séculos de colonialismo e depois perseguida pelos representantes da revolução, de orientação comunista, que diziam que a “revolução era pagã”. Porém, a hipocrisia é uma característica dos que estão no poder e tal fato não era praticado pelos dirigentes, que, às escondidas, visitavam os curandeiros:

“Dizem até, numa altura em que os grandes não punham os pés nas igrejas nem sequer admitiam cerimónias para lembrar os antepassados, tudo isso porque a revolução era pagã, alguns, muitos destes alguns, dizem as falas populares, saíam dos seus Volvos e dirigiam-se, à socapa, ao velho Aeroporto, famoso por socorrer as mais incríveis inquietações.” (Ibide, Ibidem, p. 29)

Contrapondo-se à asfixia das origens locais, o narrador mostra a relação com o mundo dos mortos, o que os envolve como os xicuembos (espíritos malignos, constantes na pintura de Malangatana Valente), xipócùes (almas de outro mundo) e os nyangas (curandeiros). Sendo assim, conhecemos doenças como a nyocana, a doença da lua, sofrida por Marimbique, o ritual para sua cura e como o ritual se adaptou à geografia dos subúrbios:

“Quando há luar, o atingido entra nas convulsões, sofre espasmos. (...) Mata-se um animal representativo – cabrito, por exemplo – cozinha-se carril de amendoim de galinha, mais xima, alguns assimilados fazem arroz, junta-se a família. Para além disso, existem as bebidas tradições, como o uputso. Vinho também serve, mas tem que ser branco. (...) Ajoelha-se a um canto da palhota, se for no subúrbio, no quarto da flat para aqueles que transitaram e estão na cidade, e fala com os velhos de antigamente. (...) A cerimônia termina sempre com alegria entre os convivas. Assim, os que estão deste lado da Terra podem continuar sossegados, os espíritos haverão de protegê-los.” (Ibide, Ibidem, pp. 115-116)

Como a mãe de Marimbique acreditava nos valores da revolução, não dava importância para o que sentenciavam os nyangas (curandeiros) e Marimbique não cumpriu as obrigações necessárias. Somente com a velhice acompanhada do desespero em não reencontrar o filho e a morte que se aproxima, é que ela retornará às crenças locais:

“O filho sofrerá a vida inteira desta doença e dos maus espíritos que lhe ensombraram os caminhos. Muitos anos depois, a velha será uma devota das consultas aos curandeiros. Mas o filho terá já desaparecido, as suas demandas pouco ajudarão a saber do seu destino.” (Ibide, Ibidem, pp. 116-117)

Embalados pelo clima festivo e de vitória absoluta da independência, alguns excessos foram cometidos pelos novos governantes e seus simpatizantes. Seguindo a cartilha dos partidos comunistas europeus, houve um patrulhamento intenso sobre os costumes tradicionais moçambicanos e tudo o que não seguisse as diretrizes européias era considerado contra-revolucionário, passível de pesadas punições. Havia, por exemplo, a “Operação Produção”, que mandava para fora da cidade os desajustados sociais, como os bêbados:

“Durante a ‘Operação Produção’ desapareceram, passaram a beber clandestinamente num improvisado bar de subúrbio, até passar a fúria revolucionária que varria os famosos improdutivos dos centros para o Niassa.” (Ibide, Ibidem, p. 113)

A burocracia estatal mostra sua (in)eficiência no controle da vida das pessoas, na quantidade enorme de documentos exigidos aos transeuntes pelos despreparados soldados governamentais, procedimento que ficou conhecido como “Operação Tira-Camisa”, que também servia para prender ou forçar ao alistamento nas tropas:

“– Documentos?
– BI, cartão de residente e cartão de recenseamento!
(...)
– Os que estão indocumentados para aquele canto. Fiquem ali em fila, tirem as camisas.
Era a mais do que conhecida ‘Operação Tira-Camisa’. Marimbique ouvira falar apenas deste tipo de rusga. Os militares ficavam à porta dos cinemas e de outros lugares de concentração dos jovens e exigiam que estes exibissem os papéis. Pediam de preferência documentos impraticáveis. Havia aqueles que, no delírio de sua ignorância, até exigiam que os incautos transeuntes sacassem dos bolsos certidões de óbito. Quem não os tivesse ia preso. Era levado para os centros de concentração ou eram recrutados compulsivamente para a tropa. A guerra apertava. Precisava-se, com urgência, de carne para canhão.”
(Ibide, Ibidem, p. 50)

Com o intuito de equiparar tudo, de criar uma sociedade sem classes como nas teorias socialistas, o governo revolucionário toma medidas radicais. Surge o cartão de abastecimento e a lei de igualdade salarial:

“Quatro barra oitenta foi uma das leis mais conhecidas no tempo da revolução, com ela se estipulava a igualdade de salários nas mesmas categorias profissionais. (...) Para além dos salários que provinham dessa lei, havia os cartões de abastecimento que o GOAM (Gabinete de Organização do Abastecimento de Maputo), distribuía, sem os quais não se podia adquirir comida nas lojas.” (Ibide, Ibidem, p. 84)

A incompetência estatal também serve para mascarar a corrupção, alimentar o tráfico de influências e favorecer os quadros políticos. Infelizmente, situações típicas das elites dos países periféricos. O romance denuncia o deplorável caráter de alguns representantes das lideranças revolucionárias e mais uma vez o despreparo para o comando:

“Muitas das padarias da cidade não faziam pão. Tinham entrado em crise. Ter pão era privilégio dos chefes, os famigerados Estruturas. Aqueles que vestiam balalaicas do poder e acenavam dos seus LADA. Os LADA eram carros importados de um dos países socialistas que apoiavam a revolução. Os populares não sabiam a origem exacta dos carros protocolares, mas eximiam-se no escârneo, LADA significava, na fala de rua: leva atrás dirigente analfabeto.” (Ibide, Ibidem, p. 13)

A luta pela independência serviu para unificar Moçambique e as várias etnias que compõem o país. Porém, a harmonia entre elas era instável, as lideranças dividiam-se, enquanto os combatentes, como Marimbique, desconheciam as outras regiões e povos. O bairro onde vivia, a Munhuana, havia o convívio entre povos de várias raças, o que pode ser confirmado nos depoimentos do poeta José Craveirinha ao comentar sobre a Mafalala.

“Em pouco tempo ficou a perceber que era do Sul, havia os do Norte. Também soube que era ronga e havia os macuas. A revolução não resolvera o grande dilema de um país embrulhado em várias nações. Não sabia Marimbique o que significava a palavra etnia. Mais tarde aprendeu na dureza do quotidiano que os homens se dividiam por origens geográficas, por raças, por línguas ou etnias.
O seu mundo era a Munhuana, ali eram, todos, meninos. Pretos, chineses, mulatos, fosse o que fossem. Eram todos da mesma raça. (...)”
(Ibide, Ibidem, p. 41)

Tal situação era geradora de intensos conflitos na mente de Marimbique, que não compreendia as desavenças entre os vivos, a matança desenfreada da guerra, o desarranjo do mundo:

“Hoje, quando olha o país mergulhado na confusão de cores, lembra-se do daltonismo que então guiava os moçambicanos. (...) De onde são estes corpos que transportamos? Que língua falarão lá no lugar para onde vão? A que etnia pertencem? Serão eles ainda muito diferentes na sua condição única de mortos?” (Ibide, Ibidem, pp. 41-42)

O convívio com a guerra faz com que a anestesia se apodere dos sentimentos das pessoas. Amor, sonho e dignidade são desalojados pela inércia e desinteresse pelo sofrimento do próximo. Os mutilados não causam espanto, nem revolta:

“Apareceram depois os mutilados. Os transeuntes olhavam-nos mas não se importavam. Era apenas mais uma palavra que a guerra nos trouxera para o vocabulário: mutilado. (...) Pessoas que viram seus membros estilhaçarem-se ao vento. Gente que perdeu sonhos e dignidade. Agora vendem maços de cigarros em bancas improvisadas nos passeios.” (Ibide, Ibidem, p. 59)

Com a aproximação da independência, os portugueses colonizadores, que segundo Albert Memmi se acostumaram à vida e às benesses oferecidas na colônia jamais imaginaram que essa realidade um dia findaria e que precisariam abandonar a colônia e seriam obrigados a retornar à metrópole. Essas pessoas viviam às custas do sistema colonial e tiveram que se retirar em massa, deixando os apartamentos nos prédios da cidade desocupados. Estes, passaram a sofrer com a falta de manutenção e foram ocupados pelas pessoas que viam do interior, que se adaptavam, a sua maneira, à nova vida, situação parecida com a da novela angolana de Manuel Rui, Quem me dera ser onda:

“Os prédios ameaçavam ruir de podre. (...) Por todos os lados havia furos de água suja. A rede de esgotos acolhia ratazanas. Os tubos das canalizações enferrujavam secos. Bebia-se água insalubre, que subia a baldes nas escadas porcas e escorregadias (...) Os inquilinos acendiam fogões a carvão nos andares, punham a lente em chama nas flats, as paredes escureciam ocultando o branco que haviam tido antes. Os homens, nas suas horas de lazer, plantavam pequenas hortas nas banheiras. Eles ignoravam a utilidade dos novos objectos que se atulhavam nas casas de banho da revolução. (...) As explêndidas moradias tinham sido deixadas ao abandono pelos antigos proprietários. Estes haviam sido apanhados desprevenidos na encruzilhada da História, eles que se julgavam eternos, na sua modorra africana (...)”(Ibide, Ibidem, p. 71)

As ruínas da cidade são as ruínas psicológicas dos moçambicanos, fraturadas pela presença constante da morte e dos mutilados. Pessoas deslocadas dos seus locais de origem sonambulam pelas estradas com o risco real de sofrer uma emboscada, além da fome, que passa a ser uma fiel companheira do cotidiano. Há, até uma denúncia feita em relação a isto, pois os postos de abastecimento tinham papéis higiênicos e outros artigos em grande quantidade, enquanto a comida quase não aparecia:

“As lojas do Povo o que tinham de mais era o batom e papel higiênico. Não que as moças desgostassem do batom que vinha do Leste da Europa, não que os nossos hábitos fossem contrários ao uso de papel higiênico, preferindo a areia, coisa que se fazia agachado, depois de se defecar no mato, também tínhamos ânus urbanizados, o que se passa é que a comida era pouca e a necessidade terrena de nos desfazermos dos sólidos desnecessários ao organismo também. Daí o excesso na provisão do papel higiênico.” (Ibide, Ibidem, pp. 143-144)

Em um estado de pobreza onipresente, cada cidadão lida com a terrível época a sua maneira. A personagem Jamaica é um ex-combatente que se tornou mutilado após pisar em uma mina. Porém, era “mutilado de uma guerra que ele recusava existir, Jamaica, enfim, vivia das lembranças”. (Ibide, Ibidem, p. 61) Recordava-se sim, dos tempos em que era jogador de futebol e das meninas que namorava. A evasão servia para encobrir a realidade: “Mutilado eu? Vão todos para aquele sítio. Dizem que eu não tenho perna? Quem não tem perna é este país que está cheio de malucos. Eu sinto a minha perna, esta muleta é tudo estilo”. (Ibide, Ibidem, p. 62) Já a personagem Bragança, amigo de Jamaica, fez da incomunicabilidade a sua forma de reação contra as agruras da guerra: “Bragança, esse, não falava. Voz dele extinguiu-se há muitos anos”. (Ibide, Ibidem, p. 63)

O desajuste perpetrado pela guerra, desloca os homens para longe da racionalidade. A realidade aniquilada pelas minas apresenta um quadro surreal que beira a loucura:

“Mano, como não podemos estar com o juízo fora de lugar? As búlgaras gostam dos pretos, os italianos filmam cães a fornicar nossas filhas. Como não ficar maluco perante esta sociedade que até nos traz os mortos de Maluana para serem passeados pela Avenida Eduardo Mondlane como se fosse dia de carnaval? Tudo isto não bate certo. Fazemos parte de um terrível carnaval de estúpidos!” (Ibide, Ibidem, p. 81)

A irracionalidade dos anos de guerra motiva a ironia ao grotesco dos acontecimentos. Rir-se da própria desgraça. O riso como fator crítico da ordem estabelecida, demonstrando, através do grotesco, as falhas da época:

“Não muito tempo depois, nos palcos da cidade se começou a zombar da própria desgraça, fazendo com que os desgraçados se rissem de si próprios. Não sei se moçambicanamente cultivamos a ironia na forma de nos retratarmos no quotidiano, mas verdade seja dita: o teatro que haveria de irromper, nos anos aflitos de guerra, nos tempos do cerco à cidade, quando se anunciavam todos os apocalipses, seria de grande motivação do riso e do escárneo.” (Ibide, Ibidem, p. 72)

A maneira como a guerra definha os sentimentos dos povos que são obrigados a conviver com cenas deprimentes e deploráveis, ultrapassa o grotesco. O horror das mortes corriqueiras, amendronta até aqueles que estão habituados a conviver com ela, como o coveiro Mandala:

“Afaguei muita morte. Mas, palavra de honra, tenho medo destes mortos. São caras de mulheres assustadas, de crianças que ainda gritam, de homens surpreendidos pelas baionetas, precocemente. Não são mortos vindos do sossego. Dizem que são as vítimas da guerra. De Maluana, de Taninga. Com estes mortos assim qualquer dia esta guerra não fará vítimas, ela própria será vítima dos mortos porque nenhuma guerra devia agüentar tanto.” (Ibide, Ibidem, p. 88)

A inconseqüência e fúria dos ataques dos soldados destroem as vidas das pessoas, que perdem seus bens materiais, seus parentes, suas identidades. Vários personagens representam o vazio, a ausência de um passado que foi dilacerado no decorrer do conflito. A perda da identidade é o que pode haver de mais doloroso, além da perda de contato com os familiares desaparecidos. Mandala é um personagem sem passado e sem nome, recebeu a alcunha daqueles que passaram a conviver com ele: “Dizer velho Mandala é uma espécie de redundância dado que o nome de Mandala ninguém conhecia e assim lhe chamavam por sua idade justificar tal alcunha”. (Ibide, Ibidem, p. 87)

O mesmo acontece com a velha mãe de Marimbique. Seu passado são especulações dos que com ela passaram os anos:

“Fala-se muito dela mas nada se sabe ao certo. Sua lenda intensifica-se na densidade da incerteza. Nem mesmo o elementar pormenor do nome. Como se chama? Ninguém lhe conhece o nome. Ela é conhecida, porém, pela alcunha, que lha deram por ser má, intratável, difícil, irascível – Xinguavilana.” (Ibide, Ibidem, pp. 22-23)

A tragédia da morte ronda todo o romance e é somente na morte que Marimbique e sua mãe, Xinguavilana, voltam a se encontrar, em dois cortejos distintos rumo as suas sepulturas. O rapaz acabou dominado pela loucura em um hospital, sua última morada. A mãe de Marimbique foi vencida pelo tempo quando perdeu a esperança de achá-lo:

“Outra vez eles cruzaram-se, agora nas campas, lado a lado. Definitivamente. Não havia como evitar que se encontrassem. O dia estava-lhes reservado a este encontro na morte, descerão à terra e residirão lá nos lugares onde acoitam os antepassados, ao mesmo tempo quase, e em talhões gémeos por assim dizer. (...)
A filha de Mambone e mãe de Marimbique não resistira ao desgosto do desaparecimento do filho. Quando perdeu a esperança de reencontrar, deixou-se levar para a terra dos antepassados. Afinal, os dois, mãe e filho, por fim encontravam-se e abraçavam-se para a eternidade.”
(Ibide, Ibidem, pp. 139-140)

A família destruída pela guerra continuará dilacerada com a presença do filho de Marimbique, que conheceu o pai e a avó no dia do enterro, e, assim, “ficou a saber a partir daquele dia quando, finalmente, lhe contaram a estória da sua família paterna”. (Ibide, Ibidem, p. 140)

Para finalizar, fico com as palavras do narrador, que melhor expressam o triste período da história recente de Moçambique, neste pungente romance de Nelson Saúte:

“Os anos oitenta foram anos dramáticos. Foi o tempo em que experimentámos a miséria mais abjecta em termos materiais. Onde os homens despojaram-se da sua humanidade e vestiram a bestialidade oculta na sua personalidade. Foram os anos da morte, da violência das armas que em humanas mãos serviram para destroçar os mais belos projectos igualmente humanos que havia entre nós e reduzir o homem moçambicano à condição de coisa nenhuma. (...) Os anos da falta de luz. (...) Os anos dos suicídios dos jovens, da morte estúpida e brutal dos jovens. Estes são os anos oitenta. Os anos da nossa desgraça individual e colectiva, mas os anos que resgatamos hoje e quase choramos ao lembrá-los porque em tudo em que eles representavam havia uma pureza que as minhas palavras não têm competência para nomear. E agora que os homens se vestem dos agasalhos da amnésia para atravessar as ruas, vale a pena recordá-los.” (Ibide, Ibidem, pp. 141-144)


BIBLIOGRAFIA:
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Magia e técnica, arte e política – ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.

LOPES, Nei. Kitábu: o livro do saber e do espírito negro-africanos. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2005.

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

SAÚTE, Nelson. Os narradores da sobrevivência. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000.

SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. Paisagens, memórias e sonhos na poesia moçambicana contemporânea. In: A magia das letras africanas – ensaios escolhidos sobre as literaturas de Angola, Moçambique e alguns outros diálogos. Rio de Janeiro: ABE Graph Editora, 2003.

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